A ponte de Quaraí existe?

Renato Prado Guimarães

Juiz da Corte Suprema uruguaia contou-me certa vez anedota de sua experiência de magistrado muito curiosa e significativa das singularidades do convívio de fronteira Brasil/Uruguai. Décadas antes,  fôra Juiz em Artigas. Entre esta cidade uruguaia  e Quaraí, localidade brasileira do outro lado do rio do mesmo nome, havia modesta  ponte, construída por iniciativa conjunta das comunidades das duas margens. 

"Más bien una calzada" - comentou -, obra cujas ruínas por muito tempo foram ainda visíveis do topo da moderna "Ponte da Concórdia", que a substituiu. Ocorreu ali um atropelamento. Não tiveram como determinar, os Juízes e amigos de Artigas e de Quaraí, a quem caberia a jurisdição sobre o acidente. Combinaram, então, consultar a respeito as respectivas Chancelarias. O Itamaraty teria respondido, didaticamente, que, não havendo um instrumento internacional, firmado pelos Governos centrais, que autorizasse a construção da ponte e estabelecesse precisamente seu estatuto, a ligação não existia como figura jurídica, o que tornava impossível determinar os limites de jurisdição.  

 A     Chancelaria     uruguaia     teria     sido     menos paciente, respondendo na mesma direção mas por meio de uma pergunta lacônica, contundente, terminante:   

 "Qué puente?

 O episódio é significativo de uma das categorias de dificuldades de harmonização entre a regra e o fato que com freqüência ocorrem na fronteira: para regular relações íntimas de comunidades tão próximas e afins, certas normas precisam emanar de poderes geograficamente distantes e de sensibilidade política – e prática - por vezes também remota diante de problemas locais. 

Quaraí é palco para outro exemplo do gênero. Ativa charqueada se estabeleceu na cidade brasileira para produzir carne de exportação, via Uruguai, para a África, Cuba, e... o Brasil. O abatedouro, imenso, chegou a processar 1.000 animais por dia, e seu produto era transportado por meio de um cabo aéreo, sobre o rio Quaraí, para Artigas, de onde havia escoamento fácil e econômico, por via férrea, até Montevidéu, e dali, por navio, para o mundo – inclusive o Brasil!  A fim de proteger a indústria nacional do charque, contudo, o Governo brasileiro estabeleceu severas restrições às importações do produto. A indústria nacional de Quaraí, que não podia vender diretamente no próprio país em razão da insuficiência de meios internos de transporte, faliu espetacularmente. Até hoje podem ser vistas as ruínas da fábrica perversamente “protegida” -  penosamente monumentais. 

Monumentais, também, em sua perturbadora lembrança, os restos das fundações do antigo caminho aéreo entre as duas margens do Quaraí.  

Qué camino?