Badu Fala Mansa

Renato Prado Guimarães

Curiosamente, eu ouviria muito mais tarde, e na Austrália, da boca de um pouco conhecido técnico brasileiro, Waldir “Badu” Vieira, frase praticamente igual à de Obdulio, e aplicada a circunstâncias semelhantes. 

Na noite de 29 de novembro de 1987, noventa e oito mil espectadores lotaram o Melbourne Cricket Ground para assistirem à final Austrália-Irã de futebol, classificatória para a Copa Mundial da França, em 1998. O Irã só precisava do empate para classificar-se; a Austrália, da vitória. Com um jogo vistoso e eficiente, e suas camisas verde e amarelas, como as brasileiras, a Austrália, conduzida pelo inglês Venables (ex-técnico da seleção inglesa, ex-Barcelona), dominou inteiramente o primeiro tempo e encurralou os iranianos, com uma vantagem de 2 a 0 e dezenas de oportunidades de gol, brilhantemente construídas. No segundo tempo o domínio foi igual, mas em apenas duas opacas jogadas, aos 76 e 80 minutos, o Irã logrou empatar 2 a 2 e, assim, apoderar-se da última vaga para a Copa da França.

Em país sem tradição no futebol (“soccer”), mesmo para o mais vivido espectador foi de impressionar o entusiasmo desinibido da torcida, antes do jogo e em seu transcorrer, e sua amarga consternação ante a inesperada e injusta derrota. O comportamento dos espectadores pareceu dar nova dimensão à emoção no esporte australiano, em geral muito circunspecta:  intenso na torcida, ruidoso na expressão de suas reações, frenético no aplauso e na vaia, silencioso e pungente na tristeza do empate-derrota.  Para quem vira, semanas antes, no mesmo estádio, também repleto, a final (Adelaide vs. Melbourne) de uma das principais ligas australianas de rugby, a diferença era patente. Os encantos do futebol ("soccer") pareciam conquistar, finalmente, a Austrália.

O técnico da seleção iraniana no empate redentor, o brasileiro Waldir "Badu" Vieira, surpreendeu os australianos pela virada de seu time e também pela maneira lúcida, articulada e discreta com que se houve ante as curiosas e provocadoras câmeras da TV local - expressando-se com inteligência e autoridade em inglês fluente e correto. 

Já antes da partida era apresentado como "the soft-speaking Brazilian" ("brasileiro fala-mansa"); nas declarações pós-jogo foi admiravelmente feliz, decerto sensível ao silêncio solene e angustiado das 100 mil pessoas no estádio, ele próprio sofrido e experiente de frustrações nossas semelhantes. Diante de repórter que o interrogava, ainda no campo, admitiu satisfação pela vitória mas observou, com elegância e habilidade, que igualmente lamentava a derrota dos australianos, "dez vezes melhores na partida". O resultado, na sua opinião, fora "uma derrota para o futebol". 

Visivelmente constrangido, lamentou  ter contribuído para tanta tristeza, ao frustrar "as esperanças das crianças" e de jogadores e torcedores merecedores de uma vitória. De seu papel no jogo disse que apenas "rezara", fizera uma modificação em seu time (por sinal decisiva) e, no meio-tempo, após o massacre sofrido antes por seus comandados, lhes havia recomendado que se conformassem com a inferioridade evidente e se empenhassem em “terminar o jogo com alegria". 

Por onde andará o sóbrio e sábio Badu? Quatro semanas, apenas, antes da classificação em Melbourne, havia aceito dirigir a seleção iraniana. Seu contrato fora um aperto de mão. A propósito de seu destino eventual, nunca deixam de ocorrer-me as palavras do poeta: 

“Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do Rei, lá tenho a mulher que eu quero, no leito que escolherei...”

Nas fantasias escapistas do desespero, Manuel Bandeira imaginava na antiga Capital da Pérsia o refúgio reconfortante para suas mágoas e inquietações. Badu foi para Pasárgada. Estará ainda por Teerã? Se não deu certo lá, haveria que reservar-lhe algum pouso no Brasil - se não a cama de sua escolha, alguma rede aconchegante, na toada reconfortante da fuga musical de outro poeta brasileiro, Dorival Caymmi: 

- Eu vou pra Maracangalha, eu vou...  Aqui eu não sou feliz...

Ou, talvez, acomodá-lo nas rimas  sempre tocantes, e reconfortantes, do pássaro carinhoso do vate  Chico,  tão presente e   canoro como o de Gonçalves Dias - e do Hino de "...minha terra que  tem palmeiras onde canta o  Sabiá". 

Do "Sabiá" musical e moderno, com efeito: 

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar...
E é pra ficar...

Anos mais tarde, soube que Badu havia estudado em Colônia, perto de Frankfurt, meu último posto como diplomata, ali tendo também deixado muito boas lembranças de inteligência e cavalheirismo.