Casacas comunistas, equívocas condecorações

Renato Prado Guimarães

O Cerimonial do país a visitar exige e impõe: recepção com casaca e condecorações na visita de Estado de nosso Presidente. Pânico no Cerimonial brasileiro: quem tinha casaca, àquela altura, em nosso Brasil tropical e tão informal?  E a delegação do Presidente era nutrida. Armou-se rapidamente um mutirão: funcionários jovens foram recrutados para telefonar a todos os membros da comitiva, a fim de alertá-los para a necessidade do traje. 

A um Terceiro Secretário coube a tarefa delicada de chamar um importante deputado, baiano e comunista. Cheio de dedos, não reluta em jogar em cima dos anfitriões a culpa pela exigência insólita, elitista, reacionária, burguesa, nada a nosso gosto, dá voltas e voltas e acaba chegando onde tinha que chegar: “O Deputado pode sempre alugar uma casaca no Rolas, no Rio. Eu tenho até o endereço aqui, se o senhor quiser”. O silêncio do outro lado da linha deixa o colega preocupado. E com razão, embora inesperada, pois quando o parlamentar marxista retoma a conversação, ele reclama, em tom ofendido: “Alugar casaca, eu? Pois saiba o Senhor que eu tenho três: a do meu avô, a de meu pai, e a que eu mandei fazer para o meu baile de formatura. Vou é experimentar para ver qual me cabe melhor”. 

Esse era o problema para quem dispunha da vestimenta desusada.  Os privilegiados (?) foram logo a) tirar a peça da naftalina; b) expô-la ao sol e ao vento desodorizantes de Brasília, a fim de amenizar o cheiro revelador do vasto tempo sem uso; c) experimentar para ver como caía no corpo expandido nos anos implacáveis de intervalo; d) perguntar logo por “aquela dieta” de emagrecimento imediato de que ouvira falar dias antes, e para a qual, distraído, não havia atentado como deveria. 

Isso aí me lembra sábia observação de Embaixador de escola antiga, que proclamava que o diplomata deveria orgulhar-se não das promoções e dos postos que tivera, das delegações que presidira ou dos tratados que negociara, mas sim de façanha a seu juízo mais alta: poder ainda entrar, ao aposentar-se,  na casaca do tempo de Terceiro Secretário - de quando iniciara a Carreira. 

Eu ainda tenho a minha. De fôlego preso, barriga encolhida, ainda dá para entrar (eu levo a vantagem de que era gordo quando comprei...). Em cinquenta anos, usei-a uma vez na apresentação de credenciais de meu Embaixador no Grão-Ducado de Luxemburgo (Embaixada cumulativa), outra em festa da Corte em Bruxelas, e a última nessa recepção na Capital do país visitado. No Brasil, só a tive no corpo nos provadores sombrios da velha “Tour Eiffel”, na rua do Ouvidor, onde a comprei de meia-confecção, a prestação, encorajado por colegas mais antigos e pelo preço, de ocasião. Isso a sério, em função. Pois mais de uma vez a enverguei ante minhas filhas pequenas, que adoravam ver-me nela, macaqueando pela casa com a cartola do fraque. E a ela também recorri naqueles bailes de carnaval inesperados, que os brasileiros às vezes organizam de última hora no exterior, subitamente arrependidos de não estarem no Rio. À falta de outra coisa que inventar, cabe muito bem como fantasia, sobretudo quando se leva por baixo uma camisa da seleção, de preferência na versão azul, que combina melhor.

Resolvido o problema das casacas, emergiu o das condecorações. Como usá-las? Ninguém sabia direito. Houve quem se informasse junto ao Cerimonial local, mais experiente dessas firulas, houve mesmo quem desencavasse, ninguém soube onde, um folheto pré-histórico do Itamaraty, intitulado, justamente, “Como usar as condecorações”, e que se tornou  peça de consulta obrigatória  durante a visita. Não sei por que, esse folheto apareceu em minha bagagem anos depois. Desculpe o proprietário original (quem terá sido?) pela involuntária apropriação. Reli agora. Como passa o tempo! A edição é de 1956 e as ilustrações, em ingênuos croquis, são feitas ainda sobre o inefável fardão diplomático, muito parecido com o da Academia Brasileira de Letras. Ao menos daquele, felizmente, minha geração escapou; nunca o vi vestido... Exemplo de recomendação da brochura: “As Senhoras nunca usam condecorações ao pescoço”.

Com casaca, as condecorações – aprendemos então – são usadas na sua forma de insígnias com fitas, “alinhadas de dentro para fora, uma ao lado da outra, num broche apropriado, sendo a altura nivelada pelas insígnias e nunca pelas fitas”(!). O broche era chamado de “barrette” e comportava duas escolas: a das barrettes  na forma de corrente, flexíveis e curvas (escola francesa), e a das barrettes no formato de um grande alfinete rígido  (versão inglesa). E tudo de ouro – ou, claro, metal assemelhado, pelo menos na cor. E veio então o processo de separar e dispor as condecorações em ordem de precedência – pois também entre elas há hierarquia a respeitar –, e de costurá-las nas barrettes, tarefa em que as camareiras do Hotel de nossa delegação foram de relevante valia. 

Tudo novo e divertido, mas também, há que reconhecê-lo, meio caricato. E havia quem risse gostosamente daquela movimentação canhestra e constrangida, embora necessária. O maior “gozador” era o secretário de imprensa da Presidência e meu amigo Fernando César Mesquita. “Vocês são todos uns f...átuos”  (a palavra era outra, mas é fácil adivinhar a frescura). Brincando com esses penduricalhos sem qualquer valor e significado. Peito de homem não é vitrina para vaidades bobas”. 

Mas a vingança chegaria cedo, para as zombarias de Fernando César, o feitiço virando contra o feiticeiro. No corredor do hotel, já a caminho da recepção, ajeitando minha trabalhosa barrette (na versão francesa), topo com ele, apurado na casaca do Rolas, tentando pregar no traje, desajeitado e ansioso,  a insígnia da condecoração com que havia sido contemplado na véspera pelo Governo anfitrião:  “Renato, péraí, pô! Me ajuda! Tá bem, tá bem assim? É assim que tá certo?”

Todo mundo despreza as condecorações, mas difícil é alguém recusá-las – ou mesmo escondê-las. E há quem vá longe para ter a satisfação de ostentá-las. Faz parte do folclore do Itamaraty a resposta abusada de colega, de muito tempo atrás, à pergunta sobre quantas eram e como lograra ganhar tantas: “São ao todo 45 e - veja bem - todas cavadas!”. Há também muita oposição às condecorações gerada por sua associação com regimes monárquicos, absolutistas, ou com os militares. O Uruguai nunca teve distinção civil do gênero, até 1.996; por isso fui o primeiro a receber uma condecoração uruguaia, a Medalha República Oriental do Uruguai, criada pelo Presidente Julio Maria Sanguinetti naquele ano, quando o Autor era Embaixador em Montevidéu. A outra condecorada inaugural foi a Embaixadora da Argentina, que recebeu a comenda uma semana depois. Solução bem do Uruguai, historicamente o algodão entre dois cristais, mais tarde  o cristal entre dois algodões (Crônica anterior: "Fronteiras que Aproximam").

Há um dito cético e ao mesmo tempo complacente com relação a tais honrarias:  condecorações não se pede, não se recusa e não se usa. 

Eu devo admitir que cavei uma, a paulista Ordem do Ipiranga – mais bem sugeri, quando me perguntaram que lembrança queria levar de meus tempos “em posto” em São Paulo, à frente do Escritório de Representação do Itamaraty que ali instalei.  Como explicar à prole ter condecorações de vários países e diversas ordens brasileiras, e não a do Estado onde nasci, São Paulo? Nisso me perseguia ainda o espectro daquele velho Embaixador, já mencionado nas “Crônicas do Inesperado”, que, depois de tantos exílios no exterior, a vida inteira, lamentava o pior dos ostracismos: o isolamento em sua própria terra.