Comecinho dos anos 1970. Domingo sim, domingo não, era de esperar: lá pelas onze horas o telefone de plantão da Embaixada tocava em Bogotá. Era o Cônsul Privativo em Letícia, nos confins do Solimões, que chamava, desesperado porque um avião militar brasileiro havia invadido o espaço aéreo colombiano e pousado, sem autorização prévia, na pista asfaltada do Apostadero Naval, onde fora apreendido pela Guarnição local e jazia circundado por fuzileiros de arma em riste. A tripulação da FAB vagava pela cidade, livre, mas, pressionado pelo comando militar brasileiro, em Tabatinga, ali perto, o Cônsul implorava para que conseguíssemos a licença a posteriori do comando da Aeronáutica colombiana, na Capital, e com isso a liberação da aeronave para sua missão periódica de apoio a destacamentos do Exército na fronteira.
Com o tempo, já sabíamos dos hábitos domingueiros dos brigadeiros colombianos. Em geral os encontrávamos no “Los Lagartos”, clube de golfe, ou em alguma “finca” em “tierra caliente”, algumas dezenas de quilômetros distante e umas tantas centenas de metros abaixo da fria Bogotá do altiplano. Mas era muito constrangedor, o pedido, embora sempre elegante e pronta a resposta de nossos interlocutores, que abandonavam sua folga semanal para chamar seus subordinados e autorizar a liberação do Catalina intruso em Letícia, lá no distante Solimões.
Jovem Segundo Secretário, fui a Letícia/Tabatinga, pela primeira vez, para um Seminário sobre o projeto maluco dos grandes lagos amazônicos, do Herman Kahn e do Hudson Institute. Mas esse assunto é objeto de rabiscos vindouros. Aqui me ocupo de outras questões que vieram a lume na mesma viagem, ligadas a nosso pesadelo dominical em Bogotá, por conta do Catalina impertinente – e reincidente.
O problema estava em que o avião vinha de Manaus a fim de recolher, na guarnição de Tabatinga (Brasil), mantimentos e equipamentos necessários para aprovisionar, em duas viagens, os pelotões de fronteira estabelecidos em Ipiranga e Estirão do Equador, terra e floresta adentro, ao norte e ao sul do Solimões, acessíveis só por avião ou por barco (no todo, a operação de reabastecimento comportava três pousos e três decolagens em Tabatinga/Letícia). Se a pista de Tabatinga, de terra (e barro; Tabatinga quer dizer “barro branco”), não estivesse boa, havia que pousar, "de emergência", no asfalto vizinho de Letícia, seguro e confortável. A escolha cabia à tripulação do Catalina, à luz de como percebesse as condições de Tabatinga. Se o pouso fosse em Letícia, os mantimentos e as munições para os pelotões que cabia abastecer tinham de vir de Tabatinga por terra, atravessando a fronteira sob os olhos vigilantes mas felizmente tolerantes dos militares colombianos.
A repetição das emergências começou, contudo, a dar o que falar. Quando fui para o seminário dos grandes lagos, o Cônsul chamou-me de lado e sussurrou que havia um clima de antagonismo disfarçado mas delicado entre as duas guarnições, a do Exército brasileiro em Tabatinga e a da Marinha colombiana em Letícia. Por conta das “invasões” assíduas da Aeronáutica, com a agravante do temperamento dos comandantes militares do momento, o do lado colombiano ríspido e autoritário, o da parte brasileira... também.
O Cônsul temia algum incidente grave, que pudesse comprometer as relações entre as duas guarnições, as duas cidades, os dois países (era megalomaníaco em seus temores), tão boas até então - e como sempre. Ácido, censurava os brasileiros, que estariam se comportando como na “casa da sogra”, agindo na Colômbia como se fosse Brasil. Também fofoqueiro, ele insinuava que na cidade corria a boca pequena que os jovens tenentes-pilotos brasileiros tinham outras razões para pousar na Colômbia, e não na pista precária de Tabatinga – razões ligadas a prazeres que Letícia oferecia e não eram disponíveis em sua vizinha menor brasileira. Já teriam mesmo surgido rivalidades entre eles e oficiais marinheiros do lado colombiano, a propósito de determinada musa, pelas duas partes animosamente cobiçada – justificadamente, a julgar pelo que dizia nosso funcionário, timorato mas ainda interessado, sonhador.
“- Um pedaço de mau caminho! E manhosa: dizem que adora semear ciúme, sobretudo em milico”.
Uma diva divisora, e binacional - além de aeronaval, como o Catalina...
Até parecia que era aí mesmo, nesse mau pedaço, que as relações na divisa tropeçavam...
Jovem e zeloso diplomata, arvorei-me prontamente mediador no conflito denunciado. Não sei como arrumei uma “voadeira” (canoa com motor de popa) e lá fui para Tabatinga, visitar o protagonista brasileiro mais importante na confrontação (depois do Catalina, claro), o coronel titular do Comando da Fronteira do Solimões, o nome, àquela altura, da guarnição nascida com o valoroso forte de São Francisco Xavier de Tabatinga, no lugar desde 1766.
Topei com um oficial educado, culto e competente. Revelou-se igualmente muito simpático e amistoso, mas ante as preocupações do Cônsul, que descrevi, qualificando-as prudentemente - claro -, sua reação se resumiu num “É isso mesmo” meio brusco; não acenou com nenhuma mudança de atitude e comportamento, dele ou dos seus colegas aviadores, que cavalgavam os Catalinas irreverentes.
Perguntei, ainda esperançoso: Por que o Catalina, paradigma da aeronave anfíbia, não desce na água do Solimões, quando a pista em terra não estiver boa? Nem pensar, foi a resposta. Operando na água o Catalina não pode levar toda a carga que precisamos transportar para os dois pelotões. Perguntei ainda: porque não pedir então, com a antecedência de praxe, uma licença de sobrevoo e pouso condicional em Letícia, válida para o caso de não ser segura a aterrissagem em Tabatinga? O coronel, meio surpreso diante da sugestão, deu de ombros: “Sei lá, isso é coisa da Aeronáutica”. Em nenhum momento deixou transparecer, mas acho que a guarnição brasileira de Tabatinga tinha também algum ressentimento ante os Catalinas esquivos, trabalhando os do Exército todo o tempo para preparar e conservar a pista lamacenta, só para vê-los ao cabo desprezá-la, atraídos para mais aconchegante pouso, em Letícia. Ciúmes pela diva, ainda? A bem da verdade, em minha missão não colhi qualquer indício de incursão dela também em nossa valente força terrestre.
Era aeronaval, mas não anfíbia.
De volta a Letícia, achei-me na obrigação diplomática de visitar a outra parte, o Comandante do Apostadero Naval colombiano. Muito simpático, também, cooperativo. Um tanto formal. Minimizou as inquietações do Cônsul (“Você sabe como ele é, sozinho aqui, acaba vendo chifre em cabeça de cavalo...”), mas admitiu que a convivência e a indispensável cooperação na fronteira poderiam beneficiar-se de uma mudança de tom e temperamento nas relações entre as duas guarnições, por alguma razão desmerecidas.
Quando retornei a Bogotá, e narrei essas coisas a meu Embaixador, ele riu muito, sobretudo das razões que comandariam o tráfego aéreo na região, mas me ordenou que pusesse tudo imediatamente no papel. Quando leu meu rascunho, discreto, diplomático, determinou mais: “Transforma isso numa carta minha ao tal Comandante brasileiro de Tabatinga”. Não gostei da ideia e o disse ao Chefe: essas mensagens têm de seguir um caminho, via Brasília e o Estado-Maior do Exército, Comando Militar da Amazônia, etc. etc. Ele desprezou minha argumentação, mais experiente da gente de farda e com as costas aquecidas por um antepassado Almirante, pranteado herói da Marinha, e por dois irmãos também coronéis, em Brasília.
Saiu a carta, direta a Tabatinga.
Resposta?
Nunca houve, postal, ou ao menos nunca nada nos chegou de volta às mãos. Mas talvez a mensagem não se tenha perdido, a carta pode ter até merecido a reação mais pertinente e desejável nas circunstâncias: em pouco tempo o Cônsul inquieto nos comunicava seu alívio ante convites que passara a receber, para ricas feijoadas oferecidas aos oficiais colombianos em Tabatinga, lautos “ajiacos de pollo” (são uma delícia!) promovidos em Letícia para os brasileiros do outro lado, churrascos fraternos, lá e cá, para toda a oficialidade do Exército brasileiro e da Marinha colombiana. Em tudo o Cônsul pegava carona, de ofício, gostosamente.
Não tardou muito, também, para que o Brasil construísse uma pista de categoria internacional em Tabatinga. E para que os colombianos passassem a igualmente usá-la, sobretudo quando tiveram que renovar, em Letícia, a favorita de nossos tenentes da FAB (refiro-me à pista). Não me lembro bem, mas acho que a escala em Letícia da SATENA, ligada à Força Aérea Colombiana, dava-se na verdade em Tabatinga, onde despejava e recolhia seus passageiros nos já então antiquados DC-4 da Segunda Guerra Mundial, de enésima mão, a mais recente da própria FAB, da qual haviam sido adquiridos.
Os colombianos operavam no Brasil como se em Colômbia fosse.
“Casa da sogra”? Não, casa de irmão, fraterno abrigo.