Tenho horror a coquetéis, principalmente os diplomáticos. Não há forma de convívio social mais artificial, afetada, incômoda, molesta, cansativa, frustrante, inútil, insalubre, malsã. Haja pejorativo para essa invenção abjeta.
O Marquês de Maricá certa vez disse que a pobreza não incita inveja; por mais que procure, acrescentava, não lhe descubro outra vantagem. Para o coquetel não encontro nem essa vantagem, pois há quem muita vez inveje, desavisado, seus não-participantes. A não ser que eu apele às botas de Brás Cubas, que se apiedava dos que nunca as calçaram apertadas, por não terem podido desfrutar do prazer sublime de tirá-las. Coitados dos que nunca foram a um coquetel, pois nunca experimentarão a alegria e o alívio de estar ausente de algum.
Houve quem me dissesse que o problema do coquetel está no álcool que nele se tem de ingerir, e que perturba e deprime os sentidos e a disposição física e espiritual do convidado. Não me furtei de testar a tese esdrúxula, mas só uma vez, pois de imediato me dei conta de que, se alguma coisa há pior do que coquetel com álcool, é ...coquetel sem álcool - abstêmio.
Movido a álcool? Não exatamente. A ser moído na festa, dos pés à cabeça, de tédio e canseira, que seja moído a álcool.
Festa é bom para quem quer ir; é um castigo para quem não quer. Já imaginaram o que seria ir a um casamento (ou mais), a uma festa de aniversário (ou duas, três), todo dia? Em muitos postos essa é a sina do diplomata com relação aos coquetéis – não por vontade própria, mas por dever de ofício.
E estou em boa companhia, nesse sentimento anti-coquetel, que parece ser mais generalizado do que normalmente se imagina. Em artigo do “The Economist”, sobre a felicidade na juventude e na velhice, sábio professor de Psicologia na Universidade de Stanford pontifica: “Gente jovem pode ir a coquetéis porque acha que pode encontrar lá quem lhe venha a ser útil no futuro, mas eu não conheço ninguém que realmente goste de ir a um coquetel”.
Tive um Chefe e colega, em tudo competente e inatacável, que detestava coquetéis. Acho que quase tanto quanto eu. Sabia de cor a planta dos recintos em que os coquetéis se realizavam, a fim de traçar com antecedência sua estratégia de retirada, logo depois de apresentados ao anfitrião os cumprimentos exigidos pelas normas da cortesia. No dia seguinte, à pergunta sobre como fora o coquetel da véspera, ou respondia, jovial, “Cinco minutos!”, ou, consternado, quase apologético: “Não deu pra sair logo. Você sabe, aquela Embaixada tem poucas rotas de escape, poucas saídas, tudo atravancado. Mais de meia hora...”.
Certo dia, encontrei-o numa de suas costumeiras brigas com a Secretária, tentando esquivar convite para coquetel. Muito ranzinza, mas com remorsos, nesse caso: “Eu tenho de ir às despedidas de Fulano. Ele é muito meu amigo e lhe devo algumas gentilezas importantes. Mas a coquetel nesse lugar, me prometi que nunca mais iria. Você não tem como sair. É só uma porta. O anfitrião vê quem entra e vigia quem sai!”.
Condoído, e lembrado da geografia do tal recinto, que tivera de inspecionar numa precursora de visita presidencial, tranquilizei o Chefe, assegurando-lhe que o tiraria de lá em minutos, se fôssemos juntos. Aceitou, cético, e lá fomos, ele sempre relutante, queixoso, resmungão. Subimos por um dos quatro elevadores que serviam o recinto da recepção. Cruzamos o hall de entrada, à tal porta indiscreta o colega se abraçou efusivamente com seu amigo anfitrião. Terminados os cumprimentos gratos e reciprocamente afetuosos, olhou de imediato para mim, cobrando já meio angustiado a promessa de subtraí-lo prontamente da festa. Peguei-o pelo braço, tropeçamos nuns garçons no caminho da copa/cozinha contígua à sala, adentramos naquelas dependências, para espanto de cozinheiros e seus auxiliares, esquivamos fogões, pilhas de pratos, copos e panelas, escorregamos alguns passos no chão engordurado, de passagem furtamos um que outro salgadinho, mas logo rumamos, determinados, para a porta de serviço, que dava, discretamente, para o mesmo hall por onde entráramos. Encontramos um dos elevadores de portas abertas e encetamos por ele, sem pausa, a reta final, e vertical, de nossa fuga. O Chefe estava exultante, olhando para o relógio: “Um minuto! E descemos pelo mesmo elevador em que subimos!”.
Não era o mesmo elevador, e a excursão havia durado bem uns quatro minutos mais, mas para que desmerecer seu orgulho, sua alegria espontânea e tão genuína pela glória da precoce retirada?
A marca de um minuto, eu a alcançaria, mas apenas anos mais tarde, tirando partido de minha experiência amadurecida e de um terreno particularmente favorável - belo casarão na Siesmayerstrasse, defronte ao Palmengarten, em Frankfurt, que se alugava para abrigar recepções. Topografia muito plana, desimpedida. Após os cumprimentos de praxe, à porta de entrada, bastava caminhar em linha reta, através de dois salões, passar por ampla porta envidraçada (na verdade, uma discreta saída de emergência, só encostada, com o trinco aberto – o pormenor decisivo), e descer os sete degraus da escadaria externa, abrindo para o jardim. Faltava só contornar a casa para de novo alcançar o portão de entrada – e a liberdade.
Colegas convivas frequentes de coquetéis nesse lugar cobraram-me várias vezes o modus faciendi dos sumiços repentinos, deveras invejados. Nunca revelei o segredo; vai que algum deles resolvesse fazer coquetel ali e decidisse, de maldade e gozação, bloquear-me a saída, fechando a porta... Só ao deixar o posto, rumo ao Japão, confessei a estratégia a uns poucos amigos. Ficaram muito agradecidos.
Tarde na carreira, e na vida, reinventei um sucedâneo para o malfadado coquetel. Passei a organizar, em vez dele, e com aviso prévio, reuniões no velho formato do sarau, combinando os comes e bebes com ameno convívio social e alguma forma de entretenimento: pequenas apresentações musicais, palestras ligeiras sobre temas do momento, literatura – enfim, festa, enriquecimento cultural e divulgação do Brasil. Mandava o programa com o convite bem explicado e ia quem topasse. Não me arrependi nunca.
Anunciar no convite o que será o evento é delicadeza esquecida, que se deveria restaurar. Por exemplo, convidar para jantar mas informar o convidado do que vai comer e beber, para que tenha mais informação e liberdade de escolha com respeito a aceitar ou não.
Amigos da Venezuela me deram de presente um menu, finamente decorado, que seus antepassados haviam recebido como convite da então Legação do Brasil, para um jantar a 7 de março de 1899, e no qual vinham todos os pratos que seriam servidos, com os respectivos acompanhamentos líquidos. Bons tempos: Potage à La Reine com Xerés; Bouchées Duchesse e Homard sauce mayonnaise com Sauterne; Filet piqué aux champignons com Pontet Canet, etc. etc. Como bebida geral, polivalente, Veuve Clicquot.
Coquetel de festa nacional é um anátema entre os diplomatas de todo o mundo. Obrigatório, não há recursos para custeá-lo, há muita gente a convidar, o limite de número de convidados força discriminações embaraçosas. Acaba uma reunião mal-humorada, de terno escuro, geralmente só na hora do almoço e homens, uísque, vinho e refrigerantes, ambíguos salgadinhos e doces da nacionalidade festejada. Presentes, colegas diplomatas, solidários, algumas autoridades disponíveis do Governo local, os papa-festas habituais da elite autóctone, um que outro líder da comunidade brasileira, se ali existente. Que trocam trivialidades, como em qualquer evento equivalente, esquecidos, o mais das vezes, do motivo da celebração. Uma que outra vez, Embaixador ou Cônsul mais ousado (ou inexperiente) “inova”, apresentando um artista ou conjunto musical de seu país – iniciativa em geral tida como de gosto duvidoso, recebida pelos colegas de nariz torcido, com uma complacência mal disfarçada.
Em Frankfurt, resolvi tentar fazer diferente. Em lugar do coquetel tradicional de 7 de setembro, uma festa cívica, de massa, da população. Todos os brasileiros convidados – e também os alemães amigos do Brasil. Num clube local, com campo de futebol e quadras de vôlei, playground, etc. A partir das 12:00 horas. Preço simbólico de entrada. Barracas de comida e bebida típicas brasileiras, de diversas origens regionais, do churrasco gaúcho ao pato no tucupi paraense, passando pela feijoada carioca, o bobó bahiano, o tutu e a polenta de Minas, sortidos salgadinhos de toda parte. Cerveja nossa, guaraná, caipirinha! Diversos esportes, capoeira, entretenimento cívico para as crianças, dança e música ao vivo. Muita bandeira, muito verde e muito amarelo. Sorteios de passagens para o Brasil. Discurso e Hino.
Uma certa bagunça, também, no melhor estilo nacional. O público dependia muito do tempo: 600, 800, até 1.300 pessoas, de acordo com o sol, ou a chuva. Meus sucessores imediatos continuaram prestigiando a festa, que era organizada pelo Centro Cultural Brasileiro em Frankfurt. Dentre os aperfeiçoamentos, logo no segundo, a novidade da presença do Coral Vozes do Brasil, de Colônia, que veio cantar para seus compatriotas de Frankfurt, e também se disputou pela primeira vez a “Copa Independência” de futebol de botão!
Nada mais brasileiro... E cívico!