De cócoras, humanos

Renato Prado Guimarães

“O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, deixou a Granja do Torto sem conseguir o que queria em relação ao Grupo de Amigos para a Venezuela, mas não perdeu o bom humor. Ao deparar-se com repórteres agachados para permitir que fotógrafos e cinegrafistas registrassem as imagens de sua saída, Chávez fez o mesmo: agachou-se e começou a dar a entrevista de cócoras ao lado do portão de acesso à residência oficial do presidente brasileiro. Por alguns segundos, surpreendidos com o gesto inusitado e bem-humorado de Chávez, os jornalistas ficaram sem saber o que fazer, em meio a risos. Para não ferir o curioso protocolo encampado por Chávez, todos permaneceram agachados, conversando com o presidente”. 

De per si uma “Crônica do Inesperado”, li essa nota na versão “on line” do “Estadão”, datada de 19 de janeiro de 2.003. Ocorreu-me de imediato uma sensação de “déja vu” – a lembrança de cena equivalente, no passado, e também ligada à Venezuela. 

Rememorei depois:

Nos anos 80, a presença de garimpos de brasileiros em território venezuelano gerou problemas delicados nas relações Brasil-Venezuela – os quais já cheguei a atribuir, alhures nestas Crônicas, a molecagens transcendentes do binacional Macunaíma, brasileiro e/ou venezuelano. O Ministério da Defesa da Venezuela  resolveu implantar uma guarnição militar na Serra Parima (onde nasce o Uraricoera, em cujas barrancas nasceu o herói de nossa gente), na vertente oposta à de Surucucu, onde o Brasil já tinha, há anos, um Pelotão Especial de Fronteira. A nova base fora batizada Parima B. Convidado pelo titular da pasta a estar presente à inauguração, não hesitei em aceitar. 

Na manhã do vôo, contudo, já na sala de autoridades de La Carlota, o aeroporto urbano – e militar - de Caracas, Ajudante de Ordens do Ministro puxou-me de lado e me disse que na véspera haviam sido presos numerosos garimpeiros brasileiros na área, os quais estavam provisoriamente alojados nas instalações a inaugurar, aguardando transporte para a prisão de Puerto Ayacucho.  O Ministro pedira que eu fosse advertido disso, para o caso de que preferisse não viajar, constrangido por aquela situação. Agradeci a educada deferência mas retorqui que, pelo contrário, a notícia me dava mais razão para a viagem: não só estaria presente, como Embaixador,  à inauguração de unidade militar que nos iria  ajudar a enfrentar os problemas na fronteira, como também era meu dever, como Cônsul, prestar assistência a meus compatriotas detidos. 

Viajei, pois. 

(O grifo e o negrito duas linhas acima merecem ênfase:  os problemas eram na fronteira e não  de fronteira.  Essa distinção não é só retórica; invenção de minha Embaixada em Caracas, fez uma enorme diferença no tratamento dos atritos decorrentes do adensamento demográfico e da multiplicação dos contatos na remota linde em terras de Macunaíma, no passado desertas (Brasil e Venezuela também tinham seu clichê binacional - o dos “amigos que se dão as costas”). A percepção daquela diferença não deixava de trazer relativo alívio tanto aos brasileiros, que não têm questões de fronteira em nenhuma parte, quanto aos venezuelanos, que só não as têm com o Brasil).

Em Parima B encontrei nossos compatriotas sob um rancho de sapé‚ inacabado, com precárias paredes de barro não-cozido, de meia-altura, sentados/ajoelhados, eles, sobre o chão de terra semi-batida, algemados e ligados uns aos outros, em linha, por cabos metálicos. Gente extremamente modesta e resignada, na maioria originária das partes mais sofridas do País - embora também presente um piloto de Roraima, dos que recolhiam o ouro nas pistas clandestinas, com pretensões de alto vôo e que perguntava com arrogância por que tinha que permanecer preso junto aos garimpeiros de superfície.

Com os detidos conversei algo como uma meia hora, colhendo informações, anotando recados para as famílias e devolvendo banalidades confortadoras. 

Ao final da entrevista, nas despedidas, agachei-me para apertar-lhes, de cócoras, um a um, as mãos algemadas. O que não os terá certamente surpreendido, de presumir acostumados à solidariedade espontânea e informal entre brasileiros, e pela própria naturalidade do gesto. 

A meio das despedidas, contudo, percebi que os prisioneiros já não me fitavam nos olhos.  Voltei a cabeça na direção de seu olhar meio assombrado, e vi, surpreso, que, em fila atrás de mim,  dois oficiais-generais venezuelanos que me acompanhavam na visita se haviam também agachado a fim de  cumprirem o mesmo incômodo ritual dos cumprimentos de adeus aos prisioneiros atados. 

Curvados, os carcereiros, para cumprimentar, fraternalmente, seus prisioneiros. 

De cócoras, todos - humanos.