Diplomacia e comércio

Renato Prado Guimarães

Punhos de renda também exportam  

Diplomacia e comércio são atividades hoje em dia reconhecidamente vinculadas, apoiando-se e enriquecendo-se mutuamente.  A ponto de ter havido quem parodiasse Clausewitz para sugerir que o comércio – não a guerra – é o prolongamento da diplomacia por outros meios.

Nem sempre foi assim, contudo, pelo menos no Brasil. Ainda eu fui testemunha de atitudes como a de um Embaixador da velha guarda, durante reunião de coordenação dos Chefes das Missões brasileiras na então Comunidade Econômica Europeia – encontro presidido pelo próprio Ministro das Relações Exteriores, por sinal poderoso homem de negócios.  Confrontado com dados que revelavam que o maior crescimento das exportações brasileiras era justamente para o país no qual estava acreditado, o Embaixador, conhecido por ridicularizar os diplomatas empenhados na área a seu juízo menor do comércio, repudiou prontamente o prestígio da primazia, proclamando, com altiva coerência e desarmante sinceridade:

-  “Senhor Ministro, sobre aquelas malditas exportações, quero assegurar-lhe que estou inocente!”

Quando, no princípio dos remotos anos setenta, o Itamaraty recebeu a incumbência de montar um sistema consistente e eficiente de promoção de exportações, tirando-se partido, a custo marginal, da estrutura de recursos humanos e materiais  já montada no Brasil e no exterior, tampouco era fluida, espontânea, a coexistência entre diplomacia e comércio – de diplomatas e empresários.  Havia já uma extensa e proveitosa experiência de negociação diplomática em torno dos grandes temas econômicos internacionais e do intercâmbio de produtos básicos específicos, mas era novidade e motivo para embaraçosas perplexidades a promoção das exportações ao nível específico da comercialização – o “varejo”, os “secos e molhados” do comércio, como se dizia na época, depreciativamente.

Muitos colegas diplomatas passavam como que por uma crise de identidade ao se ocuparem da exportação – tradicionalmente mais voltados para os aspectos políticos das relações entre os Estados, acostumados a terem como interlocutores outros diplomatas, de outros Estados, ainda pouco afeitos aos interesses mais tópicos do cotidiano do comércio e ao diálogo com os empresários.  E estes tampouco mostravam sentir-se à vontade junto aos diplomatas recém-chegados à arena do comércio, estigmatizados pelos “punhos de renda” de antigos e injustos clichês.  As perplexidades dos diplomatas se resolviam rapidamente, pois em todos havia a consciência da importância do dever a cumprir no serviço do país; se a promoção do comércio passava a ser prioritária para os interesses externos do Brasil, a ela havia que dedicar-se também a diplomacia, uma vez para isso capacitada.  De seu lado, os homens de negócio cedo perceberam que podiam ter nos diplomatas aliados eficazes, deram-se conta de que sob os “punhos de renda” das cansadas metáforas podia haver pulso firme e combativo, decidido e vigoroso na defesa de seus interesses empresariais, na medida em que estes passavam a identificar-se com interesses nacionais relevantes.

 
Punhos de renda, mas de mangas arregaçadas!


Rio Branco promove o cafezinho

 Na verdade, não era assim tão inédito o diplomata ocupar-se de promover comércio.  É pouco sabido, mas o Barão do Rio Branco preparou, quando Cônsul-Geral em Liverpool, em 1882, um alentado Relatório sobre o Café do Brasil na Grã-Bretanha, e foi Diretor do Pavilhão brasileiro na Exposição Mundial de São Petersburgo, em 1884, como Delegado do Governo ao mesmo tempo que Presidente da Delegação do Centro da Lavoura e do Comércio.  
 
À frente dessa auspiciosa “joint-venture” dos setores público e privado, Rio Branco se houve com os mesmos empenho e êxito que o fariam mais tarde o respeitado e admirado patrono da diplomacia brasileira.

Não foi um Diretor de Pavilhão meramente decorativo, ou de representação.  Seu biógrafo Álvaro Lins conta que “ocupava-se ele próprio de todos os assuntos”, inclusive da administração do serviço de cafezinho aos 20 mil visitantes que passavam diariamente pelo recinto do Brasil. O resultado é que o jornal de São Petersburgo acabaria dedicando todo um artigo à participação brasileira, salientando: “A Exposição do Brasil (...) continua a interessar de modo extraordinário a população de São Petersburgo. Conquanto abunde em tesouros vindos de todos os pontos do globo, que encantam a vista e o gosto, nenhuma seção da Exposição obtém o êxito verdadeiramente colossal do pavilhão brasileiro”.  Rio Branco assinalaria depois, no entanto, com argúcia e sensibilidade para o marketing, que nenhuma participação em feira se esgota em si mesma:  “Sempre fui de parecer que as exposições não bastavam, sendo indispensável que ao mesmo tempo criássemos nos grandes centros de consumo depósitos onde estivesse à venda nosso café”.  Ideia que muitas décadas depois seria adotada pelo extinto Instituto Brasileiro do Café, na forma de entrepostos, nem sempre bem administrados.

Mesmo para os atritos pessoais que surgem ocasionalmente entre funcionários do Governo e empresários, na nem sempre solidária perseguição de objetivos comuns, Rio Branco estabeleceria precedente. De um membro da delegação do Centro da Lavoura e do Comércio, que o acompanhava no evento de São Petersburgo, diria, em carta a amigo, num desabafo raro em quem teria toda uma vida de expressão cuidada e diplomaticamente comedida:  “Só lhe prestei serviços, e não fico querendo mal a esse Senhor porque quis fazer-me certos desaforos.  O que ele é é um grande tolo com pretensões a esperto.  É preciso que cresça duas vezes para pretender embrulhar-me”.

Promovendo o café brasileiro, mas nem por isso menos diplomata, Rio Branco não deixaria de avaliar politicamente a Rússia tzarista.  Na Exposição recebeu Alexandre III, com quem manteve longa conversação, e a Tzarina.  Considerou um “gigante de pés de barro” o aparelho policial e de repressão do Governo Imperial, e a amigos disse, depois de haver também conversado com o futuro Nicolau II, à época com quinze anos, que o percebia como “o Luiz XVI da Rússia”!

Haja premonição!


 
Fernando Pessoa, poeta marqueteiro 
 

Também os colegas mais voltados para as letras encontravam, para sua atividade de promoção comercial, exemplo e conforto no poeta mais consistentemente admirado pelas gerações recentes de diplomatas.  Fernando Pessoa – ninguém menos do que ele! – escreveu sobre o “marketing” com a mesma desenvoltura com que teceu seus admirados poemas.

Num artigo sobre “A Essência do Comércio”, o poeta comenta a vitória do “marketing” alemão sobre o britânico, na Índia.  Os fabricantes alemães de taças para ovos (“egg-cups”) descobriram que os ovos das galinhas indianas eram maiores do que os das equivalentes européias, cuja medida seus concorrentes britânicos utilizavam também nas exportações.  E pontifica o excelso vate: “Os alemães não tinham que alterar qualidade (podiam até baixá-la), nem que diminuir o preço;  tinham certa a vitória pelo que em linguagem científica se chama a adaptação ao mercado.  Tinham resolvido, na Índia e para si, o problema de comer o ovo de Colombo”.

Pessoa recriminava asperamente a falta de  sensibilidade para as necessidades do consumidor:  “Nada revela mais uma incapacidade fundamental para o exercício do comércio do que o hábito de concluir o que os outros querem, sem estudar os outros, fechando-nos no gabinete da nossa própria cabeça...”  Ele descreve a estratégia “para entrar num mercado seja doméstico ou estranho”, insistindo sempre em que “um comerciante não tem personalidade, tem comércio;  a sua personalidade deve estar subordinada a seu comércio;  e o seu comércio está fatalmente subordinado a seu mercado”.  Pessoa também apresenta um conceito intrigante, que sugere outros vínculos entre comércio e interesse público: “Um comerciante não é mais do que um servidor do público e recebe uma paga pela prestação desse serviço. Para isso é preciso estudar a quem se serve – mas estudá-lo sem preconceitos nem antecipações... Em resumo, o comerciante é um servidor do público; tem que estudar esse público, e as diferenças de público para público se o artigo que vende ou explora não é limitado a um mercado só”.

O poeta chega a dar conselhos, didaticamente, com graça e a nível mesmo corriqueiro de “marketing”: “Um comerciante português que faça um rótulo encarnado e verde, ou azul e branco, comete um erro comercial:  quem segue a política (entendo, o Partido) das cores do rótulo não lhe compra o produto por isso e quem segue a política oposta deixa muitas vezes de o comprar.  Por um lado não ganha;  pelo outro, perde”.  

Com humor também observa, ainda sobre os problemas de adaptação do produto ao mercado: “Um industrial que inventasse e produzisse um tipo de whisky novo, bom e barato, teria um mercado certo nas Ilhas Britânicas;  mas, se tivesse a lembrança de ornar as garrafas desse líquido com um rótulo com a bandeira daquele império, não deveria admirar-se de ver a maioria dos habitantes do Estado Livre da Irlanda impor-se o horroroso sacrifício de não o beber”.

 Salazar proibiu beber Coca-cola em Portugal a fim de proteger o consumo do vinho nacional.  Quando se liberou a bebida, Pessoa, improvisado publicitário, cunhou este esdrúxulo slogan para promovê-la:

“Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.

 

 
A tradição de saber renovar-se

 Com antecedentes como os de Rio Branco e Fernando Pessoa, entre outros tantos, por que estigmatizar negativamente os “secos e molhados” da diplomacia?

Não obstante aqueles tão nobres exemplos, ainda num discurso no IV Encontro Nacional de Exportadores, em 1977, o então Chefe do Departamento de Promoção Comercial do Itamaraty, Paulo Tarso Flecha de Lima, achava necessário mencionar que podia, às vezes, causar estranheza “um diplomata entre empresários”.  Para lembrar, contudo, que à diplomacia cabe servir ao país naquilo que a cada momento é mais importante em suas relações internacionais.  O mérito da diplomacia está em sua coerência com o País.  Se, após a independência, a Chancelaria brasileira consagrou seus esforços ao reconhecimento externo da soberania recém-adquirida;  se obteve, mais tarde, com Rio Branco e uma plêiade de competentes patriotas, o mesmo reconhecimento para os direitos territoriais adquiridos, configurando o Brasil, pacificamente, com suas definitivas e extensas fronteiras;  se contribuiu, no presente Século, para traçar e defender o perfil do País na comunidade internacional que se remodela celeremente – o Itamaraty nada mais fez do que realizar o que a seu tempo importava.  E na prioridade daquele momento, nos anos 70, da mais ampla integração do Brasil na economia internacional, a diplomacia também se engajava, decididamente.

Tais palavras ecoavam conceitos que o  Ministro Azeredo da Silveira havia corajosamente expresso, como novidade quase provocadora, numa palestra perante a Associação das Câmaras de Comércio Estrangeiras de São Paulo,  em 1974:  “A ação diplomática brasileira está voltada para a projeção, no exterior, dos interesses nacionais, hierarquizados de acordo com as prioridades         estabelecidas          pelo Governo       e         em      função           das circunstâncias peculiares a cada momento da vida do país. (...) Hoje a diplomacia se orienta primordialmente para  a magna tarefa de apoiar o desenvolvimento econômico e social.  A política exterior mantém, assim, sua estrita coerência com o que é essencial para a projeção do Brasil no campo externo:  os interesses permanentes do País e seus parâmetros culturais e éticos, bem como a melhor das tradições do Itamaraty, que é a de saber renovar-se para atender às exigências de cada momento histórico”.

São da mesma palestra de Silveira estas palavras: “Se nossa política externa é marcadamente ecumênica, não esqueço que o comércio foi o primeiro fator de ecumenismo nas relações entre        os grupos           sociais.          O         comércio      é,        simultaneamente, componente, instrumento e objetivo de política externa.  Iria longe desfiar essa complexa teia de vínculos e identidades entre diplomacia e comércio; importante é termos em mente que trabalhamos juntos com vistas aos mesmos objetivos de progresso econômico e social e de cooperação internacional.  A função precípua das Câmaras de Comércio é a de localizar e favorecer o aproveitamento de oportunidade de intercâmbio e servir de apoio para a negociação e o entendimento    que conduzem    à          comunhão   nos     benefícios econômicos das relações entre os povos.  São as Câmaras, em consequência,    aliadas          da ação   diplomática,            que     consiste precisamente em explicitar as faixas de coincidências dos interesses dos países, maximizar sua exploração em proveito das respectivas populações,       criar   condições para   que     se        traduza         em empreendimentos concretos o imenso acervo de harmonia entre eles existente – condições também para anular aquilo que possa ser motivo de divergência em seu relacionamento”.

Se me estendo na citação da palestra de Silveira é porque ela foi um marco importante na evolução da atitude da diplomacia brasileira no que se refere à promoção do comércio, um suporte conceitual valioso para o proveitoso entendimento que se logrou estabelecer entre empresários e diplomatas, para estes também um guia seguro, uma referência perene.

E – por que não dizê-lo? – cito o Ministro Silveira porque seus conceitos do passado são deveras atuais.  Difícil discordar, por exemplo, destas palavras, ainda do discurso de São Paulo, sobre os imperativos da cooperação econômica internacional, ontem e hoje: “Concebo o comércio internacional como uma combinação generosa de fluxos de bens e serviços, que deve aproveitar igualmente aos que dela participam.  Não acredito em vantagens unilaterais ou descompassadas.  Considero liminarmente condenada toda relação que não se fundamente em vantagens recíprocas para os que por meio dela vão ligar-se.  O comércio deve ser uma forma e um instrumento de cooperação, não um veículo de canibalismo econômico entre as nações.  Não acredito em iniciativas solitárias;  creio, sim, nos empreendimentos solidários.  Temos arraigada a convicção, no Brasil, de que devemos crescer com as demais nações, jamais a suas custas, da mesma maneira que não admitimos que outras nações pretendam desenvolver-se a nossas expensas”.

Colocações válidas e atuais, mas que podem parecer inesperadas, diante de tantos preconceitos ainda correntes com respeito à diplomacia.

Mas punhos de renda também exportam.