Discurso sem verbo

Renato Prado Guimarães

Ao final de um discurso altamente conceitual sobre comércio exterior, mesmo  sendo o ghost-writer resolvi fazer graça e lá chutei: “Os senhores nem repararam, mas este discurso não tem nenhum número, nenhuma cifra. O que é uma façanha notável, de que me orgulho, pois texto sobre exportações sem número é como aquele discurso sem verbo das antigas antologias escolares”. 

Caíram em cima do orador, depois de mim: “Que negócio é esse de discurso sem verbo? Como é possível, isso não existe. E que antologia é essa? Só se for a antologia de sua imaginação – de suas alucinações!”. 

Prometi provar prontamente a tese e saí em busca do discurso sem verbo. Procurei, procurei, e não encontrei. Tive de engolir as cobranças zombeteiras, e, mais, conviver com o temor alarmante de que realmente tivesse imaginado a tal peça singular. Um dia encontrei a antologia perdida, no fundo de armário esquecido da casa de meus pais, junto com outros livros, meu quepe de CPOR e um par de coturnos - furados. Abri ansioso o grosso volume, procurando sofregamente a prova redentora, mas nem ali a encontrei. Agravou-se o sentimento de culpa e de preocupação: “Será que eles têm razão, eu estou imaginando coisas?”

Há já alguns anos, recebi um daqueles simpáticos e-mails circulares, de amiga que propunha o desafio de descobrir o que faltava num discurso que reproduzia na mensagem. Começava assim: 

 

"Meus ilustres e digníssimos consórcios; meus senhores. 

Por mim, humilde membro que vou ser deste Instituto, eu vos direi sem orgulho em que me oculte: errou no que pretende, perdeu no que colime, esse que de mim muito esperou em prol deste luzido grêmio, que, sem o meu débil concurso, vive com brilho e vence com fulgor”.  

E avante ia, no mesmo tom. São 1.300 palavras! 

Alguém matou a charada? Discurso sem verbo? 

Não! Discurso sem a letra a! 

Fiquei meio desapontado, mas vi na originalidade uma pista e lá fui à Internet. Descobri não apenas o discurso sem a letra inaugural, proferido na posse do médico e filólogo baiano Antonio Gomes de Sá, no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, em 1918, como também, do mesmo autor, o esquivo discurso sem verbo!  

“Orgulhosa de si mesma, rica em vocabulos, mais do que rica, poderosa, a lingua portugueza!

Por que ?

Vasta, immensuravel, capaz de qualquer manejo; ora prompta à subfracção de uma letra principal, como o A, ora docil e obediente à falta de uma particula importante do estylo, como o Verbo.

 

Entretanto, sempre bella e sempre magestosa. Quer na prosa, como nos ensinamentos de Castilho e Herculano, quer no verso dôce ou candente de Guerra Junqueiro ou Castro Alves.

Que de mysterios na sua origem e que de belezas na sua formação !”

E vai por aí adiante. Mais de 2.300 palavras sem verbo.

Senti-me redimido com a descoberta. Quase quarenta anos depois! E também aliviado do medo de haver mesmo imaginado a estória, num surto qualquer, sugestivo de Alzheimer precoce (àquela altura, claro; hoje seria de esperar, banal...).

Mas a estória não acaba aqui. Não é que, não contente ante a descoberta redentora, embora tardia, comecei a questionar se o discurso sem verbos que lera na infância era mesmo o do Dr. Antonio Gomes de Sá? Suas palavras sobre a “rica, poderosa língua portuguesa” diziam algo a minha memória, mas esta não estaria ecoando, traiçoeira, antes os versos similares de Bilac no soneto da última flor do Lácio, inculta e bela? Lembrando palavras mas confundindo, eu,  as rimas – e as fontes? Um Alzheimer agora justificado, senil?

Voltei à Internet e refinei a busca. E não é que eu tinha razão? Quase meio século depois, descubro não apenas um, mas dois discursos sem verbo!

"Primeira regra de estilo, uma das principais e porventura a mais esquecida de todas: naturalidade por oposição a afetações ridículas. 

“(...) Muita atenção, orador noviço, para este ponto capital.
“Nada de ornatos supérfluos, apegados como parasitas ocos a cada palavra, miserável ouropel por cima de pensamentos muitas vezes ocos, (Aqui me arderam as orelhas. Não foi o Lolô Junqueira, letrado patriarca de sua família em Colina/Jaborandi, quem leu coisa minha e se incomodou com meus “ornatos supérfluos?” Deveras generoso, e amigo, contudo, disse à Heleninha Gasparian ser contrário à implicância preconceituosa ante o emprego dos adjetivos, dos quais “o Renato usa  e abusa e até que soam bem”.) sem solidez alguma, só para engano da vista de espíritos superficiais ou de mau gosto. Um brilho fosforescente e um deslumbramento passageiro, como o de um fogo de artifício, tal o único mérito desses campanudos oráculos do púlpito cristão”.

E por aí vai. Quem quiser ler até o fim, procure em  http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=713&cat=Discursos&vinda=S. Os demais discursos também podem ser lidos, na íntegra, nesse mesmo site e ainda em   http://www.gravata.com/geral/discurso02.htm . 

A segunda peça é de D. Antônio de Macedo Costa  (Bahia, 1830-1891), que estudou em Paris e doutorou-se em Roma. Dele é o discurso sem verbo da minha antologia escolar – e o que refiro em meu discurso sem número de tanto tempo depois. 

Além de testemunho positivo sobre minha sanidade controvertida, estas linhas acabam sendo, igualmente, uma desforra tardia pela malhação implacável de décadas atrás. Pena que diversos dos gozadores já não se encontram entre nós. Mas os sobreviventes, como eu, a lerão, espero.

 A todos, de cá e de lá, dedico esta crônica, com afeto e saudade.