Três a quatro vezes por semana, lá estava eu no aeroporto de Kennedy, em Nova York, à espera de alguma(s) autoridade(s) brasileira(s) que chegava(m) aos EUA. Naquela ocasião só Nova York recebia aviões do Brasil e não havia quem não passasse por lá. Acumulava, então, as funções de Chefe do Brazilian Government Trade Bureau e de Cônsul Geral, nesta função interinamente (interinidade extensa, que já levava mais de dois anos), e não tinha como escapar-lhes ou repartir madrugadas. Muita razão para reclamar.
Nas alvoradas de Kennedy (o avião chegava entre 6 e 7 da manhã), acompanhava-me frequentemente o Lino Oto Bohn, pioneiro das agências do Banco do Brasil no exterior e àquela altura Gerente da mais importante – a de Nova York, única nos EUA. De tanto o pobre Oto Lino ir ao aeroporto, ganhou o apelido cruel de “Aerolino”. Além do Lino, companhia cotidiana, e de ofício, era a do George Altman, funcionário do Trade Bureau há décadas, e que há décadas só fazia isso: receber e despedir gente em Kennedy. Figura quase legendária, muito educado e solícito, com imagem apurada, em estilo próprio, do tipo “gentleman inglês chegado da Índia”, vestia-se com apuro britânico e trazia os longos e sinuosos bigodes sempre firmes, apontando para os olhos, ligeiramente estrábicos. Jamais aprendeu português, mas era um favorito dos viajantes oficiais e dos brasileiros do “jet set”, que lhe pediam sempre assistência no aeroporto, onde tinha as melhores relações com a imigração e a alfândega.
As despedidas, à noite, não eram tão solitárias: o horário era mais conveniente (o vôo saía às 20:00 horas) e a sala VIP era confortável e generosa. Não era mal marcar presença junto às autoridades de partida, nem eram ruins o uisque e os salgadinhos de despedida. Era o que eu chamava do happy-hour da Varig – alegremente concorrido pelos brasileiros moradores de ofício da cidade.
De manhã não havia conforto algum, nem as cafeterias da área de desembarque estavam abertas. Quem levantava, como eu, às 4:30, em casa em New Rochelle, para chegar a tempo, tinha que engolir um café às pressas e algum pão esquecido para agüentar até o término da missão aeroportuária e a chegada à repartição, em Manhattan, muitas vezes só depois de deixar o(s) visitante(s) ilustre(s) no(s) hotel (éis). Àquela hora o aeroporto era quase deserto, ainda estava em limpeza. Única distração, durante a espera pelo vôo da VARIG, era observar e admirar o desempenho de Altman, cultivando cada um dos seus interlocutores no aeroporto, perguntando por suas famílias, trazendo-lhes bolinhos de uma padaria especial em Queens para amenizar o fim do turno da noite. E nos admirávamos ante a popularidade que conquistara e mantinha em seu ambiente de trabalho, onde todo mundo lhe perguntava, afetuosamente: “How are you today, George?”. Pergunta acompanhada, dependendo do grau de intimidade, pela também polida indagação: “And Pearl, how is she?” (Pearl era a esposa; nunca a vi).
Uma manhã, batíamos perna, Lino e eu, por uma das áreas de espera. em meio à limpeza matinal, esquivando as poças de detergentes, água e sabão, bem como as onipresentes máquinas-escova, seres ruidosos, erráticos, espirrantes detestáveis. Da sala de bagagens vem um carregador, empurrando seu carrinho (na verdade, quase uma jamanta 8 eixos), um daqueles imensos e simpáticos “African descendants” que transportavam as malas em outros tempos. Ele nos vê, faz uma pausa em sua precisa trajetória e cumprimenta, cortês: “How are you today, Mr. Consul?”
Respondi o cumprimento com recíproca polidez, mas Lino e eu nos entreolhamos, surpresos diante de minha inesperada popularidade no aeroporto. A saudação de meu inesperado amigo matutino confirmava um grave e incômodo desvio funcional, fruto de uma assiduidade certamente exagerada. Não foi preciso dizer muito para concluir: está na hora de mudar alguma coisa. De volta ao Consulado, liguei para meu amigo Secretário-Geral, Vice-Ministro, em Brasília (Baena Soares), e simplesmente lhe contei o episódio matutino, do “How are you today?” - sem pedidos, comentários e ilações. Mas ele foi rápido, entendeu prontamente o "How are you today, Mr. Consul" (já servira em Nova York) e prometeu: “Deixa comigo, vou providenciar”. E cumpriu. Duas semanas depois chegava o anúncio de que novo Cônsul havia sido designado para Nova York, nada menos do que o grande, competente e pra lá de simpático Didu Alves de Souza.
Passamos a repartir as ásperas madrugadas, Didu e eu, solidariamente. E, equitativos na repartição de custos e benefícios, também, claro, as amenas e bem regadas despedidas vespertinas.