Macunaíma, arteiro binacional?

Renato Prado Guimarães

Macunaíma não é brasileiro? Até hoje eu me sinto desconcertado ante a enormidade de minha tardia descoberta das raízes exógenas de nosso herói sem nenhum caráter.

 

A novela de Mario de Andrade, publicada por primeira vez em 1926, é um marco sabidamente relevante na literatura e na própria formação intelectual do brasileiro. Assinala os primórdios da modernidade de nosso pensamento no Século XX e provoca, com sua "cisma assombrada", sadia introspecção no nativo, contrastando-o de maneira cruelmente reveladora com os valores importados e passivamente aceitos. Tem algo de épico em sua comicidade e em seu drama. E o protagonista maior, que dá o nome à obra, é "o herói de nossa gente", como um prócer da nacionalidade na involuntária busca de uma identidade coerente com seu país - herói de aparências míticas mas contestador audaz de supostas realidades. Talvez, mais que herói, um anti-herói, que se impõe menos pelas afirmações do que pelos questionamentos - o renitente primitivo que perenemente disputa e qualifica nossas aspirações de pseudocivilizados. 

 

O personagem-título da novela é apresentado por Mario de Andrade como filho da tribo dos tapanhumas, cujas tabas os etnólogos localizam nas confluências do Arinos e do Tapajós, à margem direita e meridional do Amazonas. Mas na própria novela se dá como local de seu nascimento a barranca do Uraricoera, com nascentes na Serra Parima e curso paralelo ao da Serra Pacaraima, divisores de águas entre a Amazônia e a Orinóquia e linhas de fronteira com a Venezuela. Nasce na fronteira, pois, o herói, mas foi do "capão de Meu Bem, que fica nos cerros da Venezuela", que "... imperou sobre os matos misteriosos". E é naqueles sítios também que, depois de magnas estripulias, e quando "deixou de achar graça nesta terra", o Pauí Pódole, o Pai do Mutum transcendido no Cruzeiro do Sul, o transforma na constelação da Ursa-Maior.

 

Na verdade, boa parte da trama de Macunaíma, numerosas peripécias, o nome e a própria personalidade de seu protagonista se inspiram em lendas indígenas recolhidas por Theodor Koch-Grunberg, pesquisador alemão que nas duas primeiras décadas do século XX visitou as tribos de Roraima e da Guaiana venezuelana. Mario leu no original seu "Von Roraima zum Orinoco", editado em Stuttgart em 1916, detendo-se particularmente nos capítulos dedicados aos mitos dos taulipangues e dos arecunas - tribos aparentadas, do mesmo grupo linguístico Caribe, as primeiras com presença mais no Roraima brasileiro, as demais instaladas sobretudo nas margens setentrionais do Caroni, afluente do Orinoco, na bela e misteriosa Guayana. Em espanhol, a obra só apareceria em 1979, em Caracas, em edição do Banco Central venzuelano, em três volumes; ouvi dizer que haveria uma edição dos anos trinta, em português, do Instituto de História de São Paulo, mas não pude confirmar. Nascido tapanhuma, mas nos estertores amazônicos das Serras Parima e Pacaraima, Macunaíma teria, pois,  raízes também ao Norte, na Venezuela.

     

Importante é que o próprio Mario de Andrade chama atenção para essas fontes venezuelanas de Macunaíma: "Não se pode dizer que o protagonista deste livro, que extraí da obra do alemão Koch-Grunberg, seja o Brasil. É tão ou mais venezuelano do que nosso e desconhece a estupidez das fronteiras (...)  O fato de que o protagonista do livro não seja absolutamente brasileiro me agrada muitíssimo” (Citado no ensaio "El Tupy y el Laúd", de Gilda de Mello e Souza, que serve de prólogo à "Obra Escogida" de Mário de Andrade, publicada como volume 56 na Biblioteca Ayacucho, a importante série latino-americana editada em Caracas).  O autor parece aspirar a que seu personagem ultrapasse as fronteiras convencionais e ganhe universalidade, que tenha não a nacionalidade circunstancial dos Estados, mas sim a identidade essencial do homem - sua humanidade. 

 

Em artigo publicado em dezembro de 1989 no "El Bolivarense", de Ciudad Bolivar, Rafael Pineda, crítico e ensaísta venezuelano, dava por contado e muito positivo o elo entre as lendas recolhidas pelo professor alemão e a obra de Mario de Andrade. O título é de per si significativo: "Macunaíma: del Mito de Guayana al Diamante Brasileño". Pineda recorda que o herói das lendas indígenas originais era o "...Grande Mau, ainda que na prática se trate de um maniqueísta frequentemente alegre e brincalhão... o riso mágico desde o fundo da natureza”. E exalta "o  diamante já talhado pelo sumo artífice: o romance Macunaíma... prodigioso rebuliço entre o  mundo legendário e o mundo tecnológico". Em suas palavras, “a saga de Macunaíma, tal como a reinventa e projeta Mario de Andrade, abrange  desde o río Uraricoera até São Paulo e Río de Janeiro, girando em si mesma, assinalada por toda sorte de arrebato lingüístico e metafórico (...), o que precisamente permitiu ao autor elaborar o que qualificou como ‘poema heróico-còmico’, a cada passo um estálido de humor, com o que fica desarmada toda sublimidade”.

Tais descobertas me surpreenderam deveras, embora já me viesse acostumando a encontrar vínculos absolutamente inesperados entre o Brasil e a Venezuela. De um lado, chocava o brasileiro ser posta assim em dúvida, inclusive por seu criador, a brasilidade de um brasileiro maior, ainda que de uma "pátria tão despatriada"; de outro, excitava o Embaixador uma afinidade profissionalmente atraente, de possível proveito para as boas relações entre o país a que servia e aquele junto ao qual se encontrava servindo, uma vez que as origens binacionais de Macunaíma não deixam de nos mostrar mais próximos, nós e os bons vizinhos venezuelanos. É bem verdade que a dupla nacionalidade de Macunaíma, em se tratando do "herói sem nenhum caráter", poderia ser considerada ofensiva para quem não o tem, como nós, firmemente incorporado a seu acervo cultural e afetivo; o ex-Presidente Sarney certa vez até me chamou atenção para isso. Visto, porém, em sua condição universal de anti-herói, que lhe dá caráter (!), não parecia, o redescoberto Macunaíma, causar maior constrangimento. Pelo contrário, testei repetidamente as reações possíveis, com bons resultados. Quando de nosso tapanhuma roraimense ouviu descrição na linha em que o apresenta Gilda de Mello e Souza no ensaio que antes mencionei - "um vencido vencedor, que faz da debilidade sua força, do medo sua arma, da astúcia seu escudo. Que, vivendo num mundo hostil, perseguido, diminuído, em luta contra a adversidade, termina sempre esquivando a desgraça...” - intelectual amigo não conteve este comentário, espontâneo e surpreso: 

- "Pero eso es puro venezolano!"

Certamente muita gente terá conhecimento dos vínculos venezuelanos de Macunaíma. Pessoalmente ignorante, no entanto, e abalado pela tardia descoberta, interpretei-a como mais uma expressão da inelutável falta de caráter de Macunaíma, aprontando mais esta, transcendente, lá das alturas de sua tumba estelar, para os que ignorávamos aquelas fontes exógenas: por décadas venerado, com todas as suas mazelas, nos panteões de nossa nacionalidade, subitamente nos revela, ranheta e gozador, que não a tem.  Por outro lado, perplexo diante de episódios perversos que se repetiam ao redor de Roraima e perturbavam a vida na fronteira, empolgado pela releitura da obra e impressionado ante a naturalidade corriqueira do sobrenatural que a permeia, pensava que muita gente supersticiosa se perguntaria se para aquelas adversidades contemporâneas não concorreria alguma influência mofina do astucioso e vingativo primitivo.

Fosse eu mais dado a essas coisas de astrologia, teria investigado, com efeito, a possibilidade de alguma emanação travessa e zombeteira oriunda da Ursa Maior, na qual se transformou o herói por via da feitiçaria dos três pauzinhos de Pauí Pódole. Um astrólogo-mitólogo experiente e aplicado poderia mesmo encontrar matéria de investigação nas conjunções da Ursa Maior com Centauro, cuja estrela Beta é a encarnação astral da bela e ardente Ci, a Mãe do Mato, a icamiaba-amazona maior paixão de Macunaíma em suas primeiras estripulias amorosas. De repente, saudades e arrufos galaxiais, póstumos na terra mas celestialmente eternos, podem refletir-se em implicâncias e malvadezas a nosso modesto nível planetário. Seria ocupação bem ao gosto traquinas do tapanhuma arreliento, sem molecagens outras que praticar e decerto desditoso e ciumento nos vastos espaços siderais, maquinando que Ci estará "lá no campo do céu banzando nuns trinques toda enfeitada passeando brincando quem sabe com quem...". 

 

A ser procedente a suspeita, especulava que, para combater nossos estorvos nos confins brasileiro-venezuelanos, seria o caso de recorrer-se, em apoio da diplomacia, aos préstimos esconjuratórios dos pajés fronteiriços, aos feitiços autóctones de taulipangues e arecunas, as tribos de onde em primeira instância nos veio Macunaíma. Diante da seca inédita em Roraima, em 1997/98, indagaria também se, a provocá-la - e ao fogo devastador -, estaria não o mal afamado "El Niño", mas sim o herói sem nenhum caráter. Dessa hipótese não deixa de ser sintoma intrigante o fato de que a chuva redentora veio imediatamente depois de uma singela pajelança - remédio para mandinga de índio, não para caprichos meteorológicos. Boa providência, a da FUNAI, de levar os feiticeiros txucarramaes do Brasil Central para Boa Vista; afinal, como o santo, o pajé de casa não faz milagre. Se não funcionasse, o ritual importado, única alternativa seria esperar passivamente pela chuva, torcendo com paciência para que o herói logo se cansasse e renunciasse espontaneamente a seus despachos, com aquela frase-gesto taxativa, tão a nosso jeito:

 

- "Ai, que preguiça!..."

O magno incêndio de Roraima lembra aliás esta lenda impressionante,  narrada a Koch-Grunberg, em 1913, pelo taulipangue Mayuluaipu (na versão da edição de 1979 do "Del Roraima al Orinoco"): 

 

"..quando tudo estava seco, chegou um grande fogo. Toda a caça entrou dentro da terra por um buraco. Não se sabe onde está esse buraco. Tudo se queimou, os homens, as serras, as pedras. Os rios secaram. Macunaíma fez homens novos de cera. Mas estes se derreteram por completo ao sol.  Então se pôs a fazer bonecos de barro. Estes se tornaram cada vez mais duros ao sol. Logo os converteu em homens.” 

 

Versão taulipangue da gênese, com ninguém menos que Macunaíma (aquele sem nenhum caráter) como nosso grande Criador - a partir do barro!