O Brasil (e sua cachaça) no nascimento da Austrália

Renato Prado Guimarães

São praticamente desconhecidos os laços de Arthur Phillip, o fundador da nação australiana, com o Brasil colonial, bem como o fato, surpreendente, de o Brasil ter sido o primeiro país a exportar para a Austrália. Tampouco se sabe que o item principal daquela precoce relação de comércio foi a cachaça, presumivelmente fluminense – a qual teve presença relevante e amplamente documentada no próprio

nascimento do novo país.

              

Eu mesmo só tive prenúncio desses vínculos quando me preparava para assumir a Embaixada em Camberra, ao ler, em Montevidéu, “The Fatal Shore”, erudita e comovente epopéia da “transportation” de convictos britânicos para o novo continente, de autoria de Robert Hughes, respeitado ensaísta australiano (também, por muitos anos, o editor de arte do "Time Magazine").

Posteriormente, ainda no Uruguai, Dona Martha Sanguinetti,  esposa do Presidente e arguta historiadora, chamaria minha atenção para o papel de Phillip em Colônia do Sacramento, presenteando-me com esplêndida e esclarecedora biografia do fundador, “Arthur Phillip, 1738-1814 - His Voyaging”, por Alan Frost,  cuja capa, de per si significativa, traz reprodução a cores da bela tela “Pesca da Baleia na Bahia de Guanabara”, de Leandro Joaquim, hoje no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio.

O Capitão Arthur Phillip foi o Comandante da “Primeira Frota” (“First Fleet”), que inaugurou a “transportation” de degredados para a Austrália. Foi igualmente o primeiro “Capitão Geral e Governador em Chefe” da nova colônia, onde permaneceu da chegada a Botany Bay e Sidney, em janeiro de 1788, até dezembro de 1792, quando “...partiu para mar alto na firme segurança de que era querido e respeitado por todos no lugar, e de que Sua Majestade estava feliz em aprovar  sua conduta na execução das árduas e importantes tarefas que lhe haviam sido atribuídas” - na avaliação admirada e respeitosa de Manning Clark, historiador australiano.

Antes, devidamente autorizado pelo Almirantado inglês, Arthur Phillip servira na Marinha portuguesa durante quatro anos, de 1774 a 1778. Nessa condição, esteve envolvido nos combates em torno de Colônia do Sacramento, cuja guarnição naval luso-brasileira comandou em diversos períodos em 1775 e 1776. No Prata e também em escaramuças ao largo da Ilha de Santa Catarina, granjeou assinalado respeito no Governo luso-brasileiro, por suas virtudes humanas e militares. Num relatório a Lisboa, o então Vice-Rei do Brasil, Barão do Lavradio, de quem se fez amigo, dele diz que era um oficial “de educação e princípio”, capaz de aceitar as razões alheias “sem aqueles insuportáveis excessos de temperamento de seus compatriotas”, um militar  franco, sincero e “muito valente”.  

           

Em carta  a Pombal, Lavradio também diz, sobre a atuação de Phillip em Colônia, que apenas com uma improvisada fragata havia obrigado os espanhóis a respeitarem a fortificação, “como era devido”. Há também registro de carta sua ao compatriota Mc Douall, que comandava a esquadra portuguesa com base em Santa Catarina, mensagem na qual insistia dramaticamente para que se desse combate à grande esquadra espanhola que avançava sobre a ilha, em 1777, “implorando-lhe, para bem de sua própria honra, e a da Nação (inglesa), não renunciar ao ataque”. Mc Douall se retiraria no  entanto para o Rio de Janeiro, para grande irritação de Lavradio, deixando desprotegidos Santa Catarina, o Rio Grande do Sul e Colônia. Ao lado dos inegáveis serviços que prestou a Portugal, e ao Brasil, é muito provável que Phillip tenha também furtivamente servido a seu país, tirando partido da comissão portuguesa para levantar informações sobre a costa brasileira e do Prata - e mesmo sobre atividades econômicas estratégicas no interior do Continente, como a da produção de diamantes e ouro no Distrito das Minas (sobre o qual existiria uma memória alegadamente de sua autoria, ilustrada por aquarelas com “Views of the diamond works... taken on the spot”).

Em Lisboa, Phillip era tido também em alta conta. O Embaixador inglês informaria Londres de que “A Corte portuguesa está extremamente satisfeita com o desempenho deste cavalheiro,...ele serviu nos Brasis com grande zelo e honra”. A soberana portuguesa, Maria I, chegou a servir-lhe de “pistolão”, interferindo junto à Corte de St. James, com empenho, para que Phillip fosse promovido na Royal Navy, o que ocorreria em 1779, um ano após haver deixado o serviço de Portugal.

Há indicações de que para sua designação como Comandante da “Primeira Esquadra” teria contribuído a circunstância - citada na imprensa inglesa da época, mas não comprovada - de que comandara navio português que transportou para o Prata, sem qualquer perda de vida (uma façanha notável para a época), 400 degredados lusos, aos quais teria, no destino,concedido liberdade e “pequenas parcelas de terra, naquele delicioso lugar” (“The St. James Chronicle”, 2 de fevereiro de 1787). Teria igualmente sido o Comandante do presídio de Colônia, com idéias inovadoras para a época, em termos de regeneração de detentos. Também há evidências de que poderia ter estado ao lado de Nepean, na administração Pitt, durante as duas rodadas de negociações que Londres empreendeu com os portugueses, em 1782 e 1784, para tentar obter que o Brasil substituísse as colônias perdidas na América do Norte como lugar de exílio para os “convicts” que abarrotavam as prisões inglesas. Não houvessem resistido, os portugueses, teria sido outra, com certeza, a história do Brasil e da Austrália, esta ao cabo escolhida, em última instância, como  escoadouro dos excedentes carcerários ingleses e para tanto adrede “descoberta” por Cook alguns anos antes.

 

Antes de Cook, portugueses, espanhóis, holandeses e franceses haviam estado ali. Mas não se teriam interessado pela ocupação, justificada para os ingleses pela necessidade de encontrar espaço para seus multitudinários contingentes de “convicts”. Timor, onde Portugal se estabelecera três séculos antes, está a pouco mais de 400 quilômetros do litoral norte-ocidental australiano, distância mínima para seus inquietos navegadores. Não por menos já foram encontrados canhões com brasões manuelinos em praias recônditas daquela costa e há notícia de que os ingleses toparam, ao primeiro contato, com aborígenes conhecedores de palavras do português no litoral do Northern Territory. Cristóvão de Mendonça teria mesmo percorrido, em 1522, a mais distante costa sul-oriental, com quatro naus, em missão mantida secreta pelos portugueses, pois a área cabia ali aos espanhóis, de acordo com o acertado em Tordesilhas.

Tão conscientes e respeitosos eram os ingleses dos títulos antecedentes portugueses que Philipp, ao constituir oficialmente a nova Colônia,  só reivindicou para sua Coroa a metade oriental do continente australiano, em respeito aos direitos de seus aliados à porção a oeste do meridiano 135, em função do peculiar acordo (Tordesilhas) de quatro séculos antes.  Em 1825, para abrigar o novo núcleo de povoamento de Melville Island, a nova colônia empurraria seus limites até o meridiano 129, mas ainda atentando para os direitos portugueses a oeste. Mais tarde, aquela parte remanescente do continente australiano seria incorporada ao país como o Estado de Western Australia. Uma unidade política contemporânea, de passado inglês, cuja linha de fronteira deriva ainda de Tordesilhas! Senador de Western Austrália, descendente de migrantes portugueses recentes, convidou-me, ainda em 1996, em Perth, a compartilhar com ele o orgulho de estarmos pisando terra descoberta pelos ancestrais lusitanos e a eles por tanto tempo pertencente, embora nunca ocupada. (Nota do Autor: Pois não é o caso de dizer e proclamar que Tordesilhas é o mais antigo documento diplomático ainda vigente, atualizado em suas inúmeras derivações nacionais no correr dos séculos?!)

Phillip planejou sua viagem com escala no Rio de Janeiro, preferindo atravessar duas vezes o Atlântico a seguir a rota mais curta ao longo da costa africana até o Cabo da Boa Esperança. A “Primeira Frota” ancorou na Guanabara em princípios de agosto de 1787, depois de uma escala em Tenerife e antes de seguir para a Cidade do Cabo e o destino final, em Botany Bay. Ao contrário do tratamento frio dado anos antes a Cook, Phillip foi recebido no Rio com afeição e honras (“bandeiras ao vento, canhões retumbando”), junto com suas tripulações. O novo Vice-Rei, Luis de Vasconcellos e Souza, ordenou à guarda do Palácio que lhe prestasse continência formal toda vez que descesse a terra - o que “refletia a consciência de Vasconcelos do quanto sua Nação devia a Phillip” (Alan Frost, obra citada).

Botany Bay, selecionada por Cook para servir de base inicial para a ocupação do Continente australiano, não pareceu adequada a Arthur Phillip. As condições do lugar não sugeriam pudesse ali sobreviver um estabelecimento colonial. Em poucos dias, contudo, Phillip descobriria, poucas milhas ao norte, “o melhor porto do mundo, no qual mil barcos de linha poderiam navegar na mais perfeita segurança”. O porto seria denominado Port Jackson, logo depois rebatizado Sydney, em homenagem ao Governante britânico.

Tripulações e convictos desembarcaram e começaram a preparação do terreno para a ocupação planejada.Uma quinzena depois, as primeiras cabanas estavam prontas para abrigar as detentas, cujo desembarque começou a 6 de fevereiro.Os convictos imploraram por alguma bebida, a fim de “confraternizarem com as mulheres que deixavam os navios”. Robert Hughes assim descreve, em seu sóbrio “The Fatal Shore”, o que se seguiu: “... à terra baixou o rum, e sem tardar os tripulantes embriagados desembarcaram para se juntarem aos convictos na perseguição às mulheres, de tal forma que Bowes (um dos escribas da frota) observou que estava "além de sua capacidade dar uma descrição precisa das cenas de devassidão e desordem que se sucederam durante a noite"...

 

“Era a primeira farra no mato (“bush party”) da Austrália, com muitos xingando, alguns brigando, outros cantando (...). “ E com os casais em cio (“rutting”) entre as pedras, as tripas queimando com a áspera aguardiente (sic) brasileira, pode-se muito bem dizer que havia começado a  História sexual  da Austrália colonial” (“the sexual history of colonial Australia may fairly be said to have begun”).

Narrativas equivalentes  aparecem em diversas obras sobre a época, bem como em testemunhos escritos dos oficiais-cronistas da “Primeira Frota””.Mais tarde, houve quem chamasse aquele dia “O Nascimento da Nação” - “The Birth of the Nation”, evento no qual, como se viu, o Brasil esteve decisivamente presente, com o primeiro produto não-britânico chegado ao novo país - a cachaça, de supor que destilada nos engenhos fluminenses.Produto do qual, por sinal, admite-se a importância  mas não a qualidade. Já no Rio alguém anotou que Philip comprara “provisões de carne, que era excelente, e da ’firewater’ local, que não o era”. Nem por isso, contudo, a cachaça deixou de ser copiosamente consumida na nova Colônia, pois um oficial da frota, Watkin Tench, apenas “muitas ressacas depois” comentaria, “soturnamente” (na avaliação irônica de Hughes)“de que os brasileiros não aprenderam a arte de fabricar um rum palatável, as tropas inglesas na Austrália podem dar bom testemunho” (“1788”, Watkin Tench – “Uma narrativa da viagem da "Primeira Frota" e dos primórdios da colonização australiana”).  

O conhecimento desses inesperados vínculos não parece machucar a sensibilidade australiana. Se algum dia de fato teve alguma relevância, parece vir-se esgarçando o preconceito da Austrália com respeito às próprias origens. Durante toda a “transportation”, os degredados não passaram de 159.000 britânicos, enquanto as migrações posteriores levaram para aquele país milhões de nacionais de 140 nações, que compõem uma população celebradamente multiétnica e multicultural. De qualquer maneira, em defesa da mais ampla divulgação daqueles laços históricos, há que ter presente as afinidades na matéria entre a Austrália e o Brasil, ilustradas  pelo que se menciona acima, quanto a que Arthur Phillip teria começado sua experiência de “transportation” com degredados portugueses para terras então luso-brasileiras. Nós também tivemos “convicts” nas origens - e nem por isso nos sentimos menos orgulhosos de nosso passado.

Na verdade, a referência à presença de nossa cachaça no nascimento da nação australiana causa ali o alvoroço bem-humorado de um “trivia” inesperado - e nenhum constrangimento.

Ante a comprovada importância da cachaça nos primórdios da colonização, houve quem sugerisse,contudo, em tom de joça, indireta responsabilidade do Brasil no único golpe militar da História australiana. Com efeito, o álcool (um "anestésico social", nas palavras de Hughes) se tornaria rapidamente a mercadoria mais valiosa na nova colônia, chegando a circular ali como moeda corrente, à falta de numerário vindo da Metrópole. De seu proveitoso comércio prontamente se apoderaram os oficiais-carcereiros - incorporados num inescrupuloso “Rum Corps”. Quando o Governador William Bligh tentou quebrar o monopólio, foi deposto, em 1808, encarcerado e deportado pelos militares para a Van Diemen's Land (atual Tasmânia), no que a História chamou de “Rum War”, ou “Rum Rebellion”.

A termos culpa nesse motim, contudo, estaríamos em extensa companhia. Não obstante sucessivas frotas empregadas na “transportation” seguirem o bem-sucedido exemplo da inaugural, e passarem pelo Rio, embarcando invariavelmente a lucrativa "aguardiente", o móvel da “Rum Rebellion” era de largo espectro, pois nas décadas seguintes à fundação da colônia “rum” passou a ser “uma palavra que definia espíritos de todas as espécies – arrack, aguardiente, poteen, moonshine - mas que indicava, especialmente, álcool importado de Bengala”. Há registro, por outro lado, de que a maior carga chegou à nova colônia a bordo de navio mercante das províncias norte-americanas emancipadas. Já em 1793, com efeito, o “Hope” trouxe a Sidney nada menos que 7.500 galões da bebida.

Em encontro na FIESP (a poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), em 1999, Ministro australiano mencionou, com certa presunção, algo incômoda, o fato de que a Casa da Moeda brasileira iria incorporar experiência australiana para a impressão de cédulas em plástico.  Em favor do equilíbrio das relações bilaterais, e lembrado do emprego monetário da cachaça nos primórdios da colônia, achei oportuno lembrar que tal aporte tecnológico não seria mais do que uma retribuição histórica da Austrália, uma vez que seu primeiro meio circulante fora emitido nos alambiques dos engenhos de cana de açúcar  do Rio de Janeiro!