O resgate dos tapuias (ou Tapuias vs. Elefante!)

Renato Prado Guimarães

O costume da condecoração adquirida não pelo mérito, mas por pecúnia, ou outro valor, é antigo. Quem conhece as maravilhosas telas de Albert Eckhout do Museu de Copenhague, monumentos pictóricos do Brasil colonial, talvez não saiba que elas foram dadas por Maurício de Nassau em troca de uma condecoração dinamarquesa, a Ordem do Elefante. Em carta a Frederico III, o rei dinamarquês, em julho de 1654, nosso Nassau insinua que “lhe seria muito agradável receber das mãos de Sua Majestade” a cobiçada comenda – das mais antigas (1457) e prestigiosas da Europa, na época. 

Recebeu a condecoração, no devido tempo. 

À custa de nossos tapuias. 

E do Brasil.

Eckhout fôra contratado por Nassau, como Franz Post, para acompanhá-lo e documentar a colonização holandesa em Pernambuco. Seus índios, seus negros, suas paisagens e suas naturezas mortas já andaram pelo Brasil, por empréstimo dos dinamarqueses. Eu tive a oportunidade de visitá-las em Copenhague, mas onde as vi melhor, magnificamente expostas, - deslumbrantes!- , foi numa exposição-homenagem a João Maurício que ajudei a promover na cidade onde foi criado e jazem seus restos, Siegen, entre Frankfurt e Colônia, bem perto de Dillenburg, aldeia-natal do nobre alemão. 

Atribuído a Eckhout, vi também, no pequeno castelo de Hofflossnitz (na verdade, um pavilhão de caça), em Baudeler, entre Dresden e Meissen, um teto com pássaros brasileiros, pintados quando o artista trabalhou para o Príncipe-Eleitor da Saxônia, já de regresso de sua aventura pernambucana. Os pássaros não são tão interessantes como os tapuias de Copenhague, mas nenhum brasileiro perderá a viagem, pois no castelo se produz também, desde 1401, esplêndido vinho branco, seco mas discretamente frutado. Não foi por amor à arte, ou às aves, que eu encomendei várias caixas e as servi a meus convidados alemães como uma lembrança saborosa de laços antigos e desconhecidos entre nossos países. Naquele tempo (anos 2.001/2.002), as garrafas vinham com rótulos em que apareciam reproduções coloridas do teto-aviário de Eckhout.

Passarinho brasileiro em vinho alemão, produzido desde antes de o Brasil existir...

Há quem desmereça a qualidade artística das telas de Eckhout, embora ninguém conteste seu inestimável valor histórico. Pessoalmente, eu as acho uma maravilha também estética, além de extraordinário documento de nosso passado, retratando com traços ousados e cores vigorosas a identidade original do brasileiro e de seu habitat, com antropofagia e tudo – sem falar de nobres visitantes africanos, que Nassau também recebia e mandava pintar na ambiciosa e escassamente conhecida fantasia de criar seu próprio império equatorial, transatlântico, juntando sob seu cetro o Nordeste brasileiro e a costa ocidental africana. 

 Os ricos do Brasil deveriam cotizar-se para recuperar aquelas obras emblemáticas de Copenhague, resgatando-as definitivamente e as expondo sem reservas em nossos museus, para todos nós, brasileiros. Terminariam, os cogitados mecenas contemporâneos, e em grande, o que D. Pedro II começou a fazer: muito impressionado, ao conhecer a coleção em Copenhague, em 1876, ele encomendou cópias a um artista local (Niels Aagaard Lutzen), mas em tamanho menor. Tais cópias estariam sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro. Nunca vi. Se faltar dinheiro (ou quem queira gastá-lo), haveria sempre que contarmos, nós, mortais desprovidos, com a possibilidade de que os diretores do Museu dinamarquês imitassem às avessas o exemplo da transação original, aceitando na permuta redentora uma Grã-Cruz do Cruzeiro do Sul, uma Rio Branco...

Tenho o maior respeito pelo precedente do super-mecenas Assis Chateaubriand, mais ainda depois de haver visto, no MASP, soberba exposição sobre o “Romantismo – Arte do Entusiasmo”, que mostrava e alardeava a diversidade e a grandeza de um acervo que reúne obras de arte europeia, desde o Século XV, que raro museu europeu pode ostentar, mesmo os  de primeira linha. Chatô, diminuído no conceito geral dos brasileiros, começou tudo aquilo; ao menos em seu mecenato mereceria ser imitado. Vi há pouco  mega-exposição de Claude Monet no MASP expandido  e me deu muita satisfação saber que a ampliação ocorrera não só fisicamente, mas também no próprio nome da instituição, agora o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand.  

Obsessivo em que aquelas telas de Eckhout têm que vir para o Brasil, não acho desarrazoado estar acompanhando o que gregos e egípcios vêm fazendo em torno de seu direito de ter de volta patrimônio artístico e histórico que lhes foi subtraído em séculos passados. E também nossos vizinhos peruanos, que querem de volta relíquias de Cuzco e Machu Pichu que os americanos levaram para Yale século atrás, e agora até prometem devolver. 


(Nassau aparece como holandês em muitos capítulos de nossa História, por haver tido papel relevante como líder da ocupação holandesa de Pernambuco – aristocrata-soldado, mercenário contratado pela Companhia das Índias. A família é alemã, ele nasceu na região que hoje se chama Renânia do Norte/Westfália, no Noroeste alemão; seus últimos anos, viveu em Clèves, bem mais ao norte, junto à fronteira com a Holanda, e onde viria a falecer.  Curioso é que seu sobrenome foi por longo tempo usado como indicativo do penetra, do intruso, do que consegue um proveito sem pagar. Isso porque um de seus antepassados pagava bolsa de estudos para alunos oriundos de suas terras, o que levava  alunos não-convidados a compartilhar “de carona” as refeições na Universidade. Eram os “nassauer”!)