O tango também é brasileiro

Renato Prado Guimarães

Numa festa diplomático-folclórica promovida na Casa Amarilla, sede da diplomacia venezuelana, argentinos e uruguaios apresentaram espetáculos de tango. Ao final, começou um animado bate-boca entre os colegas Embaixadores da Argentina e do Uruguai, ambos grandes amigos, entre si e meus. Diante do constrangimento da assistência venezuelana, achei oportuno intervir para desarmar o conflito platino, e nada encontrei de melhor do que dizer que o tango não era nem argentino, nem uruguaio, mas sim brasileiro. 

 

A mediação foi bem-sucedida, com a disputa arrefecendo prontamente, em meio à perplexidade geral. Obrigou-me, no entanto, a já no dia seguinte enviar cartas a meus colegas Embaixadores, bem como ao Ministro Interino das Relações Exteriores, Horácio Arteaga, que presenciara o episódio, explicando os fundamentos de minha atrevida mas bem-intencionada intervenção. Não encontrei em meus “diskettes” da época cópia daquelas missivas, mas pude recuperar o texto de mensagem de teor equivalente expedida mais tarde a Roy Chaderton, Chefe do Departamento Político da Chancelaria, depois Chanceler venezuelano, que soubera da minha “tese” e manifestara interesse por conhecê-la (sua curiosidade musical era diversificada; àquela altura já havia colecionado 25 interpretações diferentes, em disco, da icônica Ária da Bachianas no. 5, de Villa-Lobos). 

 

Traduzo minha mensagem ao Roy: 

 

“Relutei sempre em tratar do assunto do “tango brasileiro”, sobre o qual conversamos esta tarde. Por prudência diplomática, pois nós, os brasileiros,  temos por supremo princípio jamais intervir em assuntos internos de outros países (e o tango, claro, é assunto doméstico  e soberano da Argentina e do Uruguai). Também me inibe una certa perplexidade pessoal. Fã do "Amanecer del Tango", da Rádio Bandeirantes, acordava às 06:00 horas para ouvi-lo; acostumei-me desde a infância ao tango platino, que sempre apreciei, e de repente, há bem poucos anos, topo com esse tango indígena, culturalmente excêntrico, do qual a grande maioria de meus compatriotas nada sabe mas que poderia ser historicamente anterior ao de nossos irmãos ao Sul.

 

“Junto mando “cassette” com amostras musicais e xerox de informações sobre nosso tango. Assinalei as partes mais significativas dos textos. Por exemplo, quando se menciona que em nossos arquivos nacionais existem partituras de tangos compostos na década de 1870, ou se explicita sem grande acerto  haver “evidência de que o tango, que se tornou uma paixão mundial e ainda mantém extensa popularidade, não somente se originou no Brasil, mas de fato com o próprio Nazareth. Verdade ou não, a responsabilidade pelo desenvolvimento do tango brasileiro cabe em grande parte a Nazareth, que dele escreveu mais de 100 peças” (capa de CD editado nos EUA nos anos 70, com tangos de Ernesto Nazareth interpretados por Arthur Moreira Lima).

 

“Você verá que, sim, tivemos um tango, “tout court”, e mesmo um “tango brasileiro”, que se confunde – ou não! – com o do Prata, na inspiração e na evolução paralela de nossa música. Na realidade, são coisas distintas, diferentes derivações regionais e nacionais  da dança andaluza chegada ao Continente em meados do Século XIX, possivelmente via Cuba. O tango de Nazareth, de Chiquinha Gonzaga,  de muitos outros, nós o conhecemos como "chorinho", "maxixe", o que seja. Mas o certo é que sobrevive, e com imensa vitalidade.  "Odeon" e "Brejeiro", por exemplo, que você poderá ouvir na gravação do piano eminentemente clássico de Arthur Moreira Lima, são peças constantes de nosso cotidiano musical – popular e erudito. Peças de terna suavidade, com intrigantes alternâncias entre a provocação alegre e uma vaga melancolia. 

 

“Nós também temos certo orgulho de havermos cedo reconhecido o imenso talento de Piazzola, e apreciado sem reservas seu a princípio controvertido (mesmo na Argentina) tango renovador (bossa nova portenha?). Com todos os precedentes que estou indicando, você suporá que temos títulos para competir com Gardel e a Boca...

 

“Nada disso, porque, na verdade, o que mais nos liga ao tango é gostar imensamente dele e uma carinhosa admiração pelo que se produziu nas margens do Prata. Ainda quando ouço Lupicínio Rodrigues, um "gaucho" de Porto Alegre, no Sul do Brasil,  cujos sambas-canções são um equivalente literário e psicológico das mais platinas letras de tangoo sentimento que me ocorre é o de identidade, jamais de competição.“Veja           os        versos,          adiante             transcritos, de "Vingança" e "Nervos de Aço"...). Não entro no mérito das letras, tão-somente assinalo que poderiam ter sido escritas em algum bar de Buenos Aires e Montevidéu, com a mesma atormentada – muitas vezes curtida - desilusão. 

 

Ademais, São Paulo “es uma ciudad ribereña del Plata”, segundo o  Presidente Lacalle, uruguaio, ao exaltar, em cerimônia argentino-uruguaia para a qual fui convidado,  a importância integradora da Hidrovia Paraguai- Paraná. (Crônica a seguir nesta série dos 87+; ante aquela incorporação  retórica de minha cidade antecipo awu parágrafo final,  antecipado em coerência com o tema das presentes mal traçadas: “Senti-me tentado a pedir a palavra a fim de felicitar o inventivo orador e endossar com admiração sua metáfora visionária e generosa. Ao mesmo tempo, contudo, proclamaria que, a ser São Paulo ribeirinha do Prata, na Hidrovia, Carrasco e a Boca serão, necessariamente, por simetria, marginais do Tietê, do Pinheiros. E o tango será ainda mais brasileiro!”). 

Não penso  em rivalidades, apenas busco e registro afinidades. O fato de que tenhamos no Brasil surpreendentes manifestações nacionais do tango sugere que somos mais parecidos, os latino-americanos, do que imaginamos. A aproximação política e a integração econômica preexistem em nossa cultura, mais além do que nos atrevemos a imaginar.

Post Scriptum 

1)          O reconhecimento do tango brasileiro progrediu sobremaneira durante os anos 90. Hoje já não surpreende tanto a menção a sua existência. Há numerosos sites na INTERNET, sobretudo norte-americanos, que ligam nosso “choro” ao tango e lhe dão primazia histórica.  O livreto de CD gravado na Alemanha, em 2.002, pelo “Cello Trio”,  conjunto de músicos alemães e brasileiros, sob o título “Tango Brasileiro”, proclama com desenvoltura até abusada: os conjuntos de choro do Rio foram os criadores “de uma forma de música que se tornou conhecida como Tango Brasileiro, numa época em que na vizinha Argentina ninguém sequer falava de tango”;

2)          Há indicações de que o tango chegou à América Latina via Cuba, como uma forma de dança andaluza; 

3)          Um ex-Embaixador do Marrocos em Buenos Aires certa vez me disse, em São Paulo, que era gratuita a disputa em torno das origens do tango: a briga entre argentinos e uruguaios, os colombianos se julgando herdeiros do gênero porque Gardel morreu em Medellin, japoneses e finlandeses reinventando a música e sobre ela arrogando-se direitos... Quando me aprestava para invocar os títulos brasileiros e aclarar de vez suas aparentes dúvidas, ele me atalhou para afirmar, taxativamente, que o tango é...  marroquino!  Contou que até hoje existe, na região de Tânger, uma dança folclórica chamada “tanga”. Tânger, Andaluzia bem perto, a poucos quilômetros do outro lado do Mediterrâneo – quem sabe ele não tenha razão? 

4)          Na verdade, em sua expressão argentina e uruguaia o tango é hoje uma dança de prestígio universal, como certamente merece. Mas igualmente nas origens parece ter sido deveras ecumênica. Não é preciso ir longe na pesquisa para encontrar outras fontes possíveis. O Aurélio dá também, como significados de menor emprego para o vocábulo, “espécie de pequeno tambor africano” e “a dança executada ao som desse instrumento”. O Houaiss consigna que a palavra ”aparece primeiro fora da Argentina como nome de uma dança da ilha de Hierro, nas Canárias e, em outras partes da América, com o sentido de 'reunião de negros para dançar ao som de um tambor', e ainda como nome do próprio tambor, provavelmente de origem onomatopaica”.  Canárias, o arquipélago ali ao largo do Marrocos...

Post-Post-Scriptum

1) Tanta coisa por nada. A Enciclopédia da Música Brasileira, da Publifolha resume com definitiva autoridade, no verbete “tango”, o que acima se procurou costurar, a partir de remendos esparsos: “Dança cantada, originária da Andaluzia, Espanha, onde surgiu por volta de 1850-1855. Expandindo-se pelas Américas na década de 1860, aclimatou-se em alguns países latino-americanos. Na Argentina fundiu-se com a ‘habanera’ cubana e com a milonga criolla, e por 1880 já apresentava características nacionais argentinas, com as quais iria se internacionalizar, sob o nome tango argentino, nas primeiras décadas deste século. No Brasil, o processo de fusão se dá com a havaneira, a polca e o lundu, apresentando, já nos fins da década de 1870, indícios evidentes de nacionalidade brasileira através do maxixe e do tango brasileiro, cujos modelos mais definidos foram fixados na obra do compositor carioca Ernesto Nazaré”.