Ótográfica

Renato Prado Guimarães

O Brasil da ditadura militar é o primeiro país a reconhecer o novo Governo independente de Angola, comandado pelo MPLA, rubro e socialista. Bateu na precedência mesmo a Rússia, ideologicamente identificada com o movimento, que os soviéticos haviam assistido com treinamento militar, armas e dinheiro nos duros embates da Guerra Fria. Nesse pronto reconhecimento, a ditadura brasileira esteve também à frente da própria Cuba, que mandara homens e armas para apoiar o Movimento. Apesar da cor politicamente oposta do novo Governo, e dos soldados cubanos que contribuíam para sustentá-lo, a disposição em Brasília era a de ajudar em tudo o possível a nação incipiente, e imensamente carente. 

Chega telegrama de Luanda. Prócer do MPLA dissera à Embaixada que o novo Governo precisava, urgentemente, de meios de divulgação para comunicar-se com seus partidários e convencer os opositores. E todas as máquinas da imprensa tinham sido adrede danificadas pela potência colonial em retirada. Sabia-se, contudo, que em São Paulo havia uma empresa de assistência técnica especializada nas mesmas marcas existentes em Luanda, capaz de  reparar e pôr em funcionamento os  linotipos e as rotativas escangalhadas. Encarecia Angola nossos bons ofícios para localizarmos a empresa, com a qual se tencionava celebrar contrato imediato, a fim de que o Governo recém-instalado tivesse acesso também às armas persuasivas da escrita.

O nome da empresa, o telegrama soletrava,  era Otográfica.

 Que boa oportunidade de ajudar! Sem custos financeiros, nem novos ônus políticos. A promoção comercial foi encarregada de localizar a empresa e viabilizar seu contato com Luanda. Saí a campo, confiante, mas deu-se o inesperado – quebrei a cara, não encontrei a firma. Todo mundo em minha Divisão se empenhou na busca, em listas telefônicas, diretórios industriais, junto a associações de indústria, de engenharia, gráficas – tudo em vão.  Procuravam na letra O, soletravam em minúcia o nome esquivo. Eu falei com amigos antigos na imprensa de São Paulo, conversei com meu pai, que tinha na época uma editora com rotativas próprias, e nada. Ninguém conhecia a Otográfica.

 A Embaixada se exacerbava com a demora, até sugerindo que esta poderia despertar nos amigos do MPLA a desconfiança de que lhes estávamos sonegando intencionalmente a singela ajuda. Sentíamo-nos sob pressão, ansiosos, como se nossa incompetência burocrática em encontrar um endereço banal pudesse desmerecer o capital político que se investira no reconhecimento pioneiro, comprometendo um gesto diplomático de dimensões históricas. Como insistíssemos em que voltasse a conversar com seu interlocutor, para verificar se não haveria mal-entendido no nome, nossa gente em Angola respondeu ter confirmado à exaustão o dado primeiramente transmitido, que reiterava, impaciente, até malcriada: O-t-o-g-r-á-f-i-c-a!

O leitor já descobriu onde estávamos comendo mosca, nós e Luanda? Em caso de resposta positiva, parabéns: o leitor é um gênio. Em caso de resposta negativa, só posso agradecer pelo consolo de identificar-se com minha própria falta de inteligência (que forma mais elegante e solidária de chamar o leitor de burro, pondo-o de parelha com o autor!; com a agravante, ainda mais comprometedora, no caso do leitor, de que o autor, generoso,  antecipou  pista  da solução aí em cima, no próprio título da crônica!). 

Tardou uns dias cair a ficha. Ou, na linguagem do Pe. Vieira,  para dar-me o “estalo”. 

A empresa se chamava Autográfica – e era a mesma que prestava assistência técnica nas oficinas de meu pai. O “Oto” ficava por conta do ouvido dos colegas em Luanda e da pronúncia angolana, no caso muito próxima da fonética de sua ex-metrópole. 

Otográfica... Autográfica... A ínfima discrepância fonética poderia ter posto em risco nossa tão cuidada política com respeito aos irmãos africanos e ao processo da emancipação dos povos colonizados.

Entre risos – meio amarelos – celebrou-se a descoberta e saiu o telegrama de resposta. Não sei, contudo, se o contato inicial vingou na prestação efetiva de serviços.