Patrão a muque, no “Estadão”

Renato Prado Guimarães

O episódio no Senado me lembra outro, que me foi contado quando entrei no “Estadão”, pelo saudoso Perseu Abramo, ou pelo Aldo Mascellani (por onde andará?). Julio de Mesquita Filho estava meio aposentado, mas ainda frequentava a Redação, que já era o Julio Neto quem comandava. Um dia agastou-se com artigo publicado em seu próprio jornal pelo correspondente no Recife, a propósito dos benefícios trazidos ao Nordeste pela SUDENE de Celso Furtado, cujas ideias e competência a matéria exaltava. O enfoque contrastava com a linha liberal do Estadão e, particularmente, com convicções pessoais arraigadas de seu patriarca. Enfurecido, este esbraveja e ameaça: “Quando aparecer por aqui, meto-lhe a mão nas fuças”. 

A meu ver, uma reação humana e elegante, como a do Senador importante: o Chefe todo-poderoso expondo-se ao desforço pessoal, em condições de presumir desiguais, pela idade, a fim de vingar a alegada ofensa, abdicando da alternativa de  simplesmente punir ou demitir o empregado, ou quem autorizara a publicação – direito juridicamente legítimo mas de aplicação prepotente e covarde,  na ótica e ética do caso.  

A atitude, fidalga mas desusada e incômoda, surpreendeu os filhos e demais diretores do jornal, a ponto de decidir-se montar um esquema para evitar se consumasse qualquer encontro entre o Chefe enraivecido e o jornalista ameaçado, quando este viesse à redação em São Paulo. 

O habilíssimo Montes, da Administração, foi encarregado de montar e coordenar o esforço pacifista. O jornalista insubordinado ficou espantado de tanto convite que recebeu para almoçar e jantar fora em São Paulo, por conta do jornal; os restaurantes eram a estratégia mais eficaz para evitar sua presença na Redação nas horas de maior risco para o embate anunciado. 

Patrão no muque, com grandeza.

Outros tempos.

Não quer isso dizer que Julio de Mesquita era tido como um grande patrão por seus empregados em São Paulo. Ainda hoje me lembro do espanto com que li, num texto-legenda de minha autoria, seu nome grafado Julio de Mesquinha Filho. Não fora erro meu, mas sim sabotagem trabalhista, na revisão ou nas oficinas. 

Por sinal,  nunca vi tanto esquerdista, ‘”comunista” mesmo, de carteirinha, como na Redação do edifício Jaraguá. Jornalistas portugueses perseguidos e  odiados por Salazar – estes, então,  tinham emprego certo no mais conservador dos diários brasileiros, sobretudo na área de cobertura internacional.  Monteiro Lobato, amigo chegado dos Mesquita, e que por conta própria chefiou a Redação quando o patriarca pegou a “espanhola” e foi abrigar-se em Valinhos,  talvez nos devesse ter explicado essa intrigante inconsistência ideológica, meio na linha do “direita pra dentro, esquerda pra fora” de nossos militares durante sua revolução mais recente, de 1964 - hipótese que consta de minhas “Crônicas Inquietas” e não deixarei de um dia aflorar. Só que no caso do Estadão haveria que inverter os termos: esquerda pra dentro na Redação, direita pra fora nas relações internacionais.