Argentina em Itaipu

Perguntei a amigo australiano: por que vocês têm tanta rivalidade com os neo-zelandeses? A resposta foi inesperada: ”Como você queria que fosse? Nós somos muito parecidos!”. Lembro-me sempre dessa frase quando se trata de nossa proclamada rivalidade  com os irmãos do Sul. Será que ela não se deve a tanto que temos em comum, brasileiros e argentinos? Rivalidade por via da igualdade?

Testei a tese, certa vez, em Frankfurt,  jogando conversa fora no intervalo de um concerto desinteressante. Meu interlocutor, culto professor alemão, arregalou os olhos e comentou: “Isso pode explicar nossa rivalidade com os austríacos!”. E divagou com vários outros exemplos, de semelhanças geradoras de diferenças e ciúmes, entre países e também Estados (Länder) da Alemanha. Para enriquecer sua enumeração, mencionei, cooperativo: Bavária x resto da Alemanha, Frankfurt x Offenbach  (cidades contíguas, que se detestam).  Ele riu da alusão à “rivalidade” bávara-alemã, mas ao nível paroquial, Frankfurt x Offenbach, perdeu o bom-humor e proclamou, ressentido cidadão de Frankfurt: “O Senhor por favor não me compare com aqueles estúpidos! Parecido com eles, eu é que não sou. Nem serei, jamais!”

 O que acaba comprovando a tese. Se eu repetisse a comparação em Offenbach, seus rivais de lá teriam a mesma reação, mostrando como são iguais, os rivais. 

Muito sofisma nessa provocação. Talvez sofisma nenhum, só provocação... 

Rivales, sí, pero iguales...

 

V.g.: Somos rivais no futebol porque somos, ambos, brasileiros e argentinos, bons nesse esporte; a quem ocorre rivalidade no pólo, em que nossos vizinhos são muito melhores do que nós, eles  imbatíveis (salvo por marcante derrota ocasional, nos anos 1920,  para o time glorioso de minha terra natal, Colina, Capital Nacional do Cavalo!)?.

Na verdade, nada impede a Argentina em Itaipu:

A Olavo Setúbal deve a diplomacia brasileira uma de suas guinadas mais extraordinárias e frutíferas. Começou em Lima, durante as cerimônias de posse de Alan Garcia, em 1985, sua primeira missão no exterior como Ministro das Relações Exteriores.  Os quatro membros do Grupo de Contadora (México, Panamá, Colômbia e Venezuela) convidaram o novo Chanceler brasileiro para uma reunião em que se consideraria a ampliação do Grupo, que buscava soluções de paz para o conflito na Nicarágua, entre os sandinistas e os “contras” aparelhados ao norte. Setúbal foi e aprovou a participação do Brasil num “Grupo de Apoio a Contadora”, formado também por Argentina, Peru e Uruguai.  

Sem perguntar a ninguém, no Itamaraty, onde houve Embaixador que achasse (e até esbravejasse, nos corredores) que a adesão criaria peias desnecessárias para o Brasil, desmereceria a relevância de seu papel individual nas relações continentais. 

Mas a guinada vingou, o Brasil não se apequenou e com ele acabou crescendo o Continente.

O Grupo de Apoio, seu predecessor Contadora, e seus sucessores (os Grupos dos Quatro + Quatro, depois o dos Oito, mais tarde rebatizado “do Rio”), constituíram e fomentaram novos formatos de entendimento continental, muito mais práticos e ágeis. Com relação ao objetivo original, Nicarágua, foram úteis para procrastinar confrontos ameaçadores e ganhar tempo até que uma solução razoável pudesse ser encaminhada. Mas o ganho maior, para o Brasil, foi a experiência de modelos mais eficazes de contato  com seus vizinhos de língua hispânica, aprimorando o entendimento com e entre eles, também restabelecendo o entendimento onde faltava. 

O que Setúbal fez foi aproximar o Brasil de seu entorno, mais do que qualquer retórica, renovando a interlocução continental, dando-lhe mais desenvoltura e consequência. Só por isso teria valido sua “diplomacia para resultados” – a qual sempre me lembrou a administração por objetivos (APO) de Peter Drucker, que havia andado de moda nos bancos brasileiros. À DpR  de Setúbal se poderia igualmente aplicar aquela frase de Sêneca,  “Não há bom vento para quem não sabe onde quer ir”, ou a que sempre citei de Fernando Pessoa (Caeiro), a propósito da APO que tentáramos também implantar na promoção comercial do Itamaraty: “Nenhum movimento desconforme com um propósito”.  

As mesmas clareza de objetivos e naturalidade de procedimentos estiveram presentes no outro grande feito de sua breve mas fecunda administração, sob a presidência de José Sarney, como ele vivamente empenhado na causa, crucial e histórica, de colocar-nos no caminho de uma aproximação autenticamente fraterna e duradoura com a Argentina, desarmando disputas desarrazoadas e criando as bases para um futuro comum e proveitoso.

Mas isto é crônica, não panegírico. Meu estimado colega Rubens Barbosa, seu Chefe de Gabinete, já escreveu com autoridade e exatidão sobre os dez meses do Dr. Olavo em Brasília (recomendo a leitura; é fácil encontrar na Internet).   As linhas que precedem eram no entanto necessárias para introduzir a descrição de um dos episódios mais inesperados e extraordinários que presenciei em toda a minha vida diplomática.  

O pior havia passado, dos conflitos gerados com a Argentina  pela iniciativa brasileiro-paraguaia de construir Itaipu. Já havia soluções encaminhadas, os antagonismos se esgarçavam. Mas Itaipu ainda era tabu em Buenos Aires, uma causa nacional sensível e carregada de temores e ressentimentos. Não era para menos, tal o volume e o calor das paixões geradas pelo conflito. Décadas mais tarde, um diplomata argentino explicaria a colega brasileiro (o Embaixador Roberto Abdenur), com humor e fair play, o dilema interno de sua Chancelaria, em solidário consenso com a nação e unânime contra as pretensões hídricas do Brasil, mas dividida com respeito às causas: havia os que acreditavam cegamente em que o Brasil construiria as barragens para represar as águas do Paraná e com isso secar a Argentina, e aqueles que pensavam que a estratégia era outra, oposta - o Brasil planejava segurar as águas para de repente abrir as comportas e inundar a Argentina.

Entre a seca e o dilúvio, Itaipu virou paranoia em Buenos Aires - uma ameaça nacional. 

Por outro lado, mesmo depois de restabelecida a democracia nos dois países, prevaleciam tensões na área comercial, havia resistências à aproximação de um e outro lado, permaneciam, ásperos e delicados, ciúmes e medos na área do uso das tecnologias do átomo.

Ainda a jusante dessas águas tormentosas, as primeiras iniciativas tomadas por Sarney e Setúbal, logo ao começo do regime democrático, culminam num grande encontro bilateral com o Presidente Alfonsin em Foz do Iguaçu, em novembro de 1985. É inaugurada a ponte Tancredo Neves, entre Brasil e Argentina, sobre o rio Iguaçu. São assinadas diversas atas, sementes para o Mercosul e o imaginoso mecanismo de cooperação e supervisão recíproca ”entre rivais” na área nuclear, que se tornaria modelo para o mundo – embora mais elogiado e recomendado do que efetivamente imitado.  

À noite, houve jantar no Bourbon Palace, hotel do lado brasileiro. Ao final, Sarney e Alfonsin degustam um conhaque amistoso, descontraídos e alegres ante os sucessos do dia. Sarney, cansado, prepara-se para as despedidas: 

“Tenho que levantar muito cedo amanhã, pois vou ver Itaipu antes de recomeçarmos os trabalhos”.

Ao que Alfonsin observa, casual, quase indiferente:

“Está aí uma visita que eu bem gostaria de também fazer”. 

Uma bomba (de paz), espanto geral! Caem os queixos. Ninguém ousaria esperar que o Presidente tomasse a iniciativa de assumir tal risco político, ante uma Argentina onde se poderia ainda tomar a visita, corajosa e reconciliadora, como uma capitulação humilhante.  Enquanto pensamos tudo isso, e tentamos recolocar o queixo no lugar, Sarney se recupera, rápido, e pergunta:

”E por que você não vem?”, seguindo-se a tréplica do argentino:

 ”Por que? Ora, você não me convidou!” 

Alfonsin tinha a grandeza dos verdadeiros estadistas. Sarney não deixa por menos e arremata o diálogo histórico, embora na forma e expressão espontâneo e trivial, singelo a ponto de quase passar despercebido: 

“Pois então está convidado!” 

Os jornais dos dias seguintes estampariam fotos que ficaram famosas, dos dois Presidentes dando-se um solene e sorridente aperto de mãos defronte da barragem majestosa, antes por muitos anos disputada por seus países, com hostilidade até mesmo aguerrida, belicosa, em certos setores e momentos. 

Nem seca, nem dilúvio, mas sim progresso, entendimento, amizade. Logo depois Alfonsin convidaria Sarney para visitar a secretíssima Pilcaneyu, a usina de enriquecimento de urânio por difusão gasosa nas alturas de Bariloche (onde nenhum Presidente civil – nem argentino! – havia antes pisado), Sarney traz Alfonsin para inaugurar uma unidade de pesquisa nuclear da Marinha no interior de São Paulo - inauguração seguida de um almoço de fraterno congraçamento binacional na fazenda Jamaica, de Abreu Sodré, já então o Chanceler. Aproximação que iria resultar naquela já acima citada supervisão recíproca dos avanços nucleares dos dois países, inspirado expediente diplomático, único no mundo - os dois países observando amistosamente as respectivas igualdades.

Rivales sí, pero iguales...

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