Casaca no varal

Noto um alvoroço no quintal, onde ficam os varais de secar roupa. Vou ver e topo com a empregada, Rosa, atônita diante dos trajes pendurados; ao lado dela, curiosos, e boquiabertos, pedreiros e pintores que trabalham na reforma da casa. E mais povo começa a chegar, acho que até gente da rua veio ver.  Tanto tempo eu não as via que custou um pouco reconhecer as roupas que a Rosa resgatara de alguma mala velha da mudança de Tóquio e pusera para tomar ar. Mas a identificação era inevitável: estávamos diante de minha solene casaca e de um smoking antigo, de inverno.  Tudo de casimira, preta, retinta, o tecido acetinado das lapelas reluzindo no contraste ao sol luminoso do dia. 

Haja contraste! Casaca ao sol de Colina... 

Ia dizer que pode ter sido a primeira na cidade, mas de chofre parei a escrita gabola. Muita casaca deve ter sido usada aqui, em cerimônias oficiais, no Século XIX. Ademais, as casacas soem aparecer quando menos se espera, e por que não em Colina? 

Como? Aparecer de surpresa, casaca?

Leiam esta estorinha, tirada dos rascunhos de minhas “Crônicas Tardias, Memórias Precoces”, ainda inéditas:

“O Cerimonial do país a visitar exige e impõe: recepção com casaca e condecorações na visita de Estado de nosso Presidente. Pânico no Cerimonial brasileiro: quem tinha casaca, àquela altura, em nosso Brasil tropical e tão informal?  E a delegação do Presidente era nutrida. Armou-se rapidamente um mutirão: funcionários jovens foram recrutados para telefonar a todos os membros da comitiva, a fim de alertá-los para a necessidade do traje.

A um Terceiro Secretário coube a tarefa delicada de chamar um importante deputado, líder de bancada, baiano e comunista. Cheio de dedos, não reluta em jogar em cima dos visitados a culpa pela exigência insólita, elitista, reacionária, burguesa, capitalista, nada a nosso gosto, dá voltas e voltas e acaba chegando onde tinha que chegar: “O Deputado pode sempre alugar uma casaca no Rolas, no Rio. Eu tenho até o endereço aqui, se o senhor quiser”. O silêncio do outro lado da linha deixa o colega preocupado. E com razão, embora inesperada, pois quando o parlamentar marxista retoma a conversação, ele reclama, em tom ofendido: “Alugar casaca, eu? Pois saiba o Senhor que eu tenho três: a do meu avô, a de meu pai, e a que eu mandei fazer para meu baile de formatura. Vou é experimentar para ver qual me cabe melhor”.

 

Pois é. Marxista baiano também tem casaca. Até três... 

 

O resto da estória é igualmente engraçado: 

 

“Esse era o problema para quem dispunha da vestimenta desusada.  Os privilegiados (?) foram logo a) tirar a peça da naftalina; b) expô-la ao sol e ao vento desodorizantes de Brasília, a fim de amenizar o cheiro revelador do vasto tempo sem uso; c) experimentar para ver como caía no corpo expandido nos anos implacáveis do intervalo; d) perguntar logo por “aquela dieta” de emagrecimento imediato de que ouvira falar dias antes, e para a qual, distraído, não havia atentado como deveria”.

Isso me fez lembrar sábia observação de Embaixador de escola antiga, que proclamava que o diplomata deveria orgulhar-se não das promoções e dos postos que tivera, das delegações que presidira ou dos tratados que negociara, mas sim de façanha a seu juízo mais alta: poder ainda entrar, ao aposentar-se, na casaca do tempo de Terceiro Secretário - de quando iniciara a carreira...

 

“De fôlego preso, barriga encolhida, na minha ainda dá para entrar (eu levo a vantagem de que era gordo quando comprei...). Em cinquenta anos, usei-a uma vez na apresentação de credenciais de meu Embaixador no Grão-Ducado de Luxemburgo (Embaixada cumulativa), outra em festa da Corte em Bruxelas e a última naquela recepção na Capital do país visitado. No Brasil, só a tive no corpo nos provadores sombrios da velha “Tour Eiffel”, na rua do Ouvidor, no Rio, onde a comprei de meia-confecção, a prestação, encorajado por colegas mais antigos e pelo preço de ocasião. Isso a sério, em função probatória ou diplomática. Pois mais de uma vez a enverguei ante minhas filhas pequenas, que adoravam ver-me nela, macaqueando pela casa com a cartola do fraque. E a ela também recorri naqueles bailes de carnaval inesperados, que os brasileiros às vezes organizam de última hora no exterior, subitamente arrependidos de não estarem no Rio. À falta de outra coisa que inventar, cabe muito bem como fantasia, sobretudo quando se leva por baixo uma camisa da seleção, de preferência na versão azul, que combina melhor.

 

Mas para o pessoal mais novo a casaca parece antes roupa de Matusalém... Como de fato é.  

O smoking? Também de casimira, muito pesado, abandonei-o logo, quente demais nos ambientes normalmente superaquecidos das festas de black-tie. O fraque, antigamente também parte obrigatória do enxoval do diplomata? Está na minha mudança de Frankfurt, ainda em Santos, aguardando processamento na Alfândega. 

Ridículo, tudo isso? Sem dúvida, é. 

Agora. 

No passado eram vestimentas da praxe, inescapáveis, como o jeans é hoje, junto com a camisa polo.  Atualmente são quase um estigma, contagiam quem as usa com o ridículo do inusitado.

Há muita caricatura de diplomata em que ele enverga a casaca obsoleta. Mas quem vê o hábito não vê o monge. Vestindo a casaca antiga pode haver gente moderna, atual, e de nossa diplomacia já se disse que é uma instituição eternamente moderna.  A mesma coisa com relação ao injusto clichê dos “punhos de renda”: sob o tecido delicado da moda efêmera pode haver pulso firme, decidido e vigoroso na defesa dos interesses nacionais, ao longo da História. 

Não só “pode haver”: houve! Basta olhar nossas fronteiras!

Casaca, smoking... Estou pensando: quando chegar o fraque, junto os três e vou doar ao Museu Municipal, na Estação. Ou vender na loja da Eliana, ali perto, de trajes para alugar...  

Mas será que alguém guardou alguma, em Colina? Afinal, não é preciso ser deputado comunista para ter uma (ou três!) no fundo do baú. 

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