Catalisador de consenso

Roberto de Abreu Sodré soube tirar bom partido, na função de Ministro das Relações Exteriores, de seu inato talento nas relações humanas  e da assistência que o Itamaraty era capaz de prestar-lhe, como instituição. Tinha a modéstia altaneira de não hesitar em pedir e aceitar apoio, quando dele se sentisse carente. E tinha o dom de fazer com que, onde estivesse, reinasse a harmonia. Sua presença jovial e espirituosa dissipava rivalidades, desarmava conflitos, gerava atmosfera propícia à negociação, ao entendimento. 

Era um catalisador de consenso. 

Tinha uma vaidade rara: a de não levar-se a sério além do razoável – nem, decerto, a seus interlocutores. Apesar de seus ares aristocráticos, era uma pessoa desprovida de soberba. Sua perene bonomia não o impedia, contudo, de assumir atitudes enérgicas, vigorosas e mesmo temerárias – gestos que surpreendiam e desconcertavam os que davam por contada sua afabilidade normalmente imperturbável. Lembro-me do pega que deu certa  vez num  Embaixador displicente, em importante país – a admoestação mais severa e constrangedora que presenciei em minha vida. E há registros de briga física sua até em palanque de comício eleitoral.  

Uma das primeiras reuniões internacionais de que Sodré participa como Ministro, logo depois de assumir o Itamaraty. Foro latino-americano, o cenário é um simpático hotel de turismo. Surpresa na hora de iniciar-se o encontro: os assessores são barrados, por iniciativa de Ministro Chefe de Delegação que desejava submeter aos colegas proposta de tal gravidade e impacto que nem mesmo seus mais próximos funcionários e assistentes podiam estar presentes.

Entram os Ministros na sala de reuniões, os assessores permanecem nas salas e terraços contíguos, jogando conversa fora, desenxabidos, desconfiados e preocupados. Trocam especulações, mas nada transparece do momentoso tema sob exame de seus chefes. Passam os minutos, uma hora, mais algum tempo ainda, e nada. 

De repente, surge Sodré, sozinho. Abre a porta, já se  desabotoando,  e vem em nossa direção. Faz que não vai  parar, mas o retemos. “Estava muito abafado, vim dar uma volta e tomar ar. E não conto nada do que está acontecendo lá dentro. Foi a condição para me deixarem sair”. Ante a insistência de seus assessores, brinca: “Vocês deveriam é aproveitar o sol lá na piscina enquanto é tempo, e se preparar para o que vem por aí, pois o que se está decidindo lá dentro vai dar um trabalho danado para vocês”. Insistimos mais, percebendo que o que Sodré queria, mesmo, era falar. Ao final, contou do que se tratava. 

A reação espantada dos assessores fez o Ministro perguntar: “Por que essa cara de defunto? Não é uma ideia importante, de impacto?” Os assessores, ainda pouco familiarizados com ele, nos calamos, constrangidos. Decorridos alguns embaraçosos momentos, achei que alguém tinha de alertá-lo. E, embora mero “peixinho” diplomático em aquário com tubarões,  assumi a audaciosa responsabilidade de fazê-lo: “Tudo bem Ministro, a ideia é realmente importante, de muito impacto. Mas se for aprovada lá dentro, tenho a impressão de que perdemos o emprego, o Senhor e eu”.

A dramática brincadeira abalou o Ministro, que logo cobrou as razões de seu emprego ameaçado. Ele não tinha por que conhecê-las, e explicamos. Ele se deu conta das implicações, muito rápido. Esqueceu de tomar ar, e do  pretexto de “ir lá fora”,  e regressou incontinenti à sala de reuniões, onde em dez minutos implodiu a ideia impactante. 

Ao ausentar-se, o Ministro, assessores de seus colegas correram para nos perguntar o que se passava. Aos que vieram a mim, repliquei que deviam perguntar a seus Ministros, aos quais não havia ocorrido a ideia valente e solidária de sair da sala para informá-los e refletir sobre o que se estava cozinhando na reunião estapafúrdia. O novato Sodré, com seu bom-senso natural e faro experimentado de político, havia cheirado o perigo e não relutara em alegar um pretexto banal para conferir com seus assistentes, com altiva modéstia e fidalga grandeza.

Quando terminou a reunião, Sodré foi muito cumprimentado pelos assessores, e não só os brasileiros, pois a ninguém havia escapado o perigo que havia logrado evitar graças a seu estratagema, prosaico mas nas circunstâncias necessário e eficaz; houve mesmo quem o proclamasse "o melhor Chanceler do Continente, salvou-nos a todos!". Dos mais agradecidos, por sinal, eram os da equipe do Chanceler autor da ideia maluca, que teriam também perdido o emprego – com certeza! Não sei como aquele Ministro soube da história do desemprego fulminante por conta de sua iniciativa impactante; nunca me falou a respeito mas sempre me tratou com distância  ressentida nos anos a fio em que seguimos trabalhando em iniciativas comuns. 

Ocorre-me agora que talvez o próprio Sodré lhe tenha contado, de caçoada.

De mim, depois, e muito a seu jeito brincalhão, o Ministro cobraria reconhecimento! “Você é um ingrato! Nem agradece!”. Ante meu espanto, fuzilou: “Afinal, eu salvei seu emprego, não salvei?”. Não só salvou como o melhoraria muito, poucas semanas depois, nomeando-me para a Chefia de seu Gabinete.

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