Colinenses

Apresentação

 

Sob o título “Vou-me embora pra Colina”, o blogue do Centro  Cultural  Brasileiro  em  Frankfurt  recolheu  e  divulgou palavras de minha  despedida  da  Alemanha  em 2012. Colinaspaulo.blogspot.com, página de colinenses, pescou  o  texto  e  o  republicou.  Depois,  pediu   mais: crônicas periódicas sobre a mudança radical, de volta às origens, e  minha  experiência  na  terra  natal  depois  de  tantos anos fora da cidade e do País.

Ao sabor da pena, descuidada, os textos foram saindo, assíduos e despretensiosos, quase que um diário colinense. Aqui e ali se fizeram presentes versos recém-descobertos de meu colega também recém-conhecido, Cláudio Guimarães dos Santos (ver "Epopeia Poética", nesta série), ao mesmo tempo enigmáticos e reveladores - luminosos. Aqui e ali fui encaixando  textos  meus anteriores, ou rabiscos de obras futuras, ao sabor  dos  temas e/ou de caprichos do momento. Igualmente tomei a liberdade de incluir, por pertinentes em várias partes, anotações de meu pai, Mario Mazzei Guimarães, natural de Bebedouro e com passagens por Colina e Jaborandi na infância e na adolescência, jornalista aclamado e premiado (Prêmio Esso 1960, entre outros), cedo falecido em São Paulo (98 anos).

Dei-lhes o  nome  Colinenses,  às  tais  crônicas.  Em pouco tempo chegaram a 75, entre 2012 e 2015, quando colinaspaulo.blogspot.com estacionou - não se mexeu mais, por motivos que não  me  foram  dados  a  conhecer.  O número de acessos ao blogue era de 12.000 no mês  de  outubro de 2012, com picos diários de até 550  ingressos;  hoje (2018!), embora por  muito  tempo  inativo,  ainda  acumula  nada  menos  que  427.461  entradas,  25  vezes  a  população  da cidade! As Colinenses, especificamente, foram  acessadas por volta de 21.000 vezes. Ser lido por tanta gente foi sem dúvida animador para quem teve seu  primeiro  livro,  “Crônicas do Inesperado”, de 2.009, tirado em parcos mil exemplares, dos quais boa parte pode ser encontrada (encontrem!) nos sebos de bom sortimento, apesar  da  acolhida bondosa de muita gente e  da avaliação alvissareira  do cronista-mor,  Luís  Fernando  Veríssimo,  que  se  referiu  às inesperadas como  “ótimas”  e  usou  uma  delas  para ilustrar matéria sua no “Estadão” e na “Zero Hora” (sobre o plágio do Hino Nacional).

Meio frustrado ante o número e a qualidade de leitores potenciais que não acessam a Internet em Colina, e empenhado em fincar âncora mais sólida na cidade, movi-me para que esta coletânea escrita, convencional, viesse a lume. Mal traçadas linhas, sem ambições, como as da net,  só com o propósito de que gente que prezo, e preza Colina, compartilhe minha expressão sincera e agradecida  do prazer de estar vivendo nesta cidade singularmente acolhedora.

Ao cabo, além de depoimento sobre o retorno, uma homenagem emotiva ao lugar que me viu nascer, e me vê agora voltar, com a sensação intrigante, embora reconfortante, de que dele nunca saí.

Por outro lado, as Colinenses também acabam virando como que a saga em toscas letras de um retorno redentor, retorno que tantos – milhares, milhões? - acalentam em devaneio perene, sonhando no áspero  cotidiano  com  o  dia em que, como eu, deixarão de lado os atropelos das metrópoles,  crescentemente  absurdas  e  inóspitas,  e  voltarão.

Voltarão às fontes, às origens, às raízes. 

E a si  mesmos.

Em Colina, ou alhures, neste Interior com virtudes e defeitos mas poderoso e imenso, generoso e aconchegante - quase uma outra nação brasileira.

Como eu me sinto bem ali!

                                                         

Colinenses nº 1

 

Camisa de fora


                A elegante cavaleira barretense se surpreende ao ver o cãozinho surgir de trás da esquina e disparar no gramado do canteiro central da avenida. Com olhos acostumados à paisagem animal da Alemanha, onde treina e compete, reconhece logo o “schnauzer” barbudo e exclama, perguntando: 

- Em Colina tem isso, solto assim, sem dono? 

O amigo ao lado a tranquiliza e instiga ao mesmo tempo, caçoando: 

- Por que a pergunta? Era o Pong. Espera que logo vem outro, o Ping! 

Dito e feito, novo cãozinho, da mesma raça,  dobra a esquina e não perde tempo em correr nas pegadas velozes do irmão que o antecedera.  

A cavaleira visitante não se contém: 

- Nossa, que surpresa! Em Colina!

O amigo, colinense vaidoso e prosa, adverte, ainda mais zombador, que Colina não fica só nisso: 

- Ora, você só viu dois cachorrinhos atravessarem a avenida.  É pouco pra Colina. Agora  o que vem – olha lá! - é um Embaixador correndo atrás, de tênis cambaio, bermudas caindo, camisa de fora e chapéu de palha!

Colinenses nº 2

 

Vou-me embora pra Colina! 

Meus amigos,

Muito obrigado, Cézar, por suas palavras tão bondosas. (...)

Eu sempre achei elogio uma coisa equívoca, redundante. Elogio é aquilo que você diz de alguém e que ele já acha que é, desde sempre. Mas o Cézar (Amaral, Embaixador) foi tão expressivo, tão veemente em suas palavras, que até me vejo tentado a acreditar no que ele disse. Não poderia, aliás, discordar, pois seria muito indelicado desmentir em público tão bom colega e amigo. Seria como naquela estória do Nelson Rodrigues, do beque que corre atrás do juiz, protestando e contestando, inconformado, aos gritos, dedo em riste: Mas foi pênalti Seu Juiz, foi pênalti! Eu fiz o pênalti! Imaginou eu interromper os louvores do César, berrando: Mentiroso, farsante! Você está inventando!

Temo que este momento esteja tomando jeito de despedida. Quem sabe vocês estejam me despedindo, na esperança de se verem livres de mim. Mas eu não estou me despedindo. Eu só admito dizer-lhes um até logo, recorrendo ao clichê refrão nessas conjunturas de separação.

O poeta foi-se embora para Pasárgada, o Caymmi foi pra Maracangalha, o Chico foi para o seu lugar, “e pra ficar”. Eu vou pra Colina.

Em São Paulo me perguntam: onde é que você foi encontrar coragem para ir morar numa cidadezinha minúscula, você que viveu tantos anos em grandes metrópoles? Minha resposta é contundente: encontrei coragem em minha covardia. É preciso ser muito valente para enfrentar a tortura diária de morar na Capital, São Paulo – e seus custos. (...) Eu sempre invejei umas botas marrons do Hans Apostel, acho que italianas, ou quem sabe inglesas, da Church’s; ele tem dinheiro para isso.  Entrei numa portinha de sapateiro na rua Sete, para consertar um tênis de couro, vi um par parecido ao do Hans em exibição, me interessei mas o sapateiro disse que não tinha em estoque. Podia, no entanto fazer sob medida, para entregar em dois dias. Preço? 70 reais. Encomendei e vejam-nas aqui, pois eu as estou calçando (não as tiro dos pés), e se admirem ante seu estilo, ao mesmo tempo roceiro autêntico e de refinamento cosmopolita, pasmem ante a qualidade do couro e do acabamento. Por sinal, encomendei outro par para meu enteado, o Leon, e já sugeri ao sapateiro assinar na sola sua obra insigne, marcando espaço no mercado europeu: Fernando Paçoca, Made in Colina... 

Ainda com relação a preços. Minha (nossa!) casa tem 469 metros quadrados de boa construção, terreno de 700, (...) e me custou preço pelo qual não havia podido comprar um apartamento de quarto e sala na Aclimação, em São Paulo. E para os padrões de Colina, o preço foi alto. Eu falo das maravilhas de minha (nossa) casa não por gabolice tola, mas para efeito de comparação de preços com São Paulo e como merchandising - propaganda em alento de minha esperança de tê-los lá, comigo, um dia.

A família me pergunta, preocupada: sua saúde, quem vai cuidar dela? Isso me preocupa, pois vou deixar de contar com a assistência perene, solidária e salvadora da médica atenta e competentíssima que é Bettina (minha esposa, então). Mas logo respondo: dois centros médicos universitários de relevância estão perto, Ribeirão Preto a hora de carro,  Rio Preto igual. Campinas está a 3 horas, São Paulo a 4 e meia, Barretos, que é referência nacional e mundial para certas especialidades, está a 15 minutos. Além disso, em Colina, no mesmo quarteirão, em frente, moram dois excelentes médicos, o pronto-socorro e o Hospital da cidade estão a 150 metros. 

Se isso não bastasse, a 800 metros, na outra direção, está o Cemitério. Dá pra ir a pé. 

Por sinal, durante conversa com compatriota colinense sobre o carro que deveria comprar, para usar em Colina, ele observou que certa marca desvalorizava muito, e depressa. Eu retorqui que não estava pensando em valor de revenda, estava querendo um carro para sempre, pra viver e morrer com ele. Aí ele retrucou, com graça macabra: então é melhor, em lugar de escolher modelo sedã ou coupé, você comprar logo um hatchback, daquelas semi-peruas com o espaço apropriado para o caixão atrás...

Colina tem 20 mil habitantes, muito bem cuidada, com lago e jardins, totalmente arborizada, totalmente asfaltada e saneada, com água que se pode beber da torneira, avenidas largas que se dão ao luxo de ter palmeiras imperiais nas ilhas de separação. A única queixa que ouvi, com respeito ao trânsito em Colina, é a de que as monárquicas palmeiras formam renques tão cerrados que os motoristas têm dificuldade para ver quem vem pela outra pista... 

Não tem universidade mas a Prefeitura dispõe de uma frota de ônibus para levar e trazer diariamente seus estudantes às cidades vizinhas, diversas viagens por dia, de ida e de volta. Lá nasceu e vive o escritor mais lido do Brasil –  o Augusto Cury, que no Brasil bate até o Paulo Coelho, que é mais pro público internacional. Berço do Augusto, e meu, e também do cavalo mangalarga paulista e do time de polo que foi o primeiro conjunto brasileiro a conseguir bater os imbatíveis argentinos. Por tudo isso é conhecida como a Capital Nacional do Cavalo. (Excluam-se desse “tudo isso”, claro, o Augusto e eu, que nada temos de equino). 

Em algum lugar escrevi que o exílio que o diplomata mais deve temer não é o da vida toda, longe da Pátria, a seu serviço, mas sim, ao voltar, o desterro na própria terra, amputado de suas origens por força das longas permanências fora. Pois eu volto às origens, volto a Colina com um sentimento deveras estranho – o sentimento de que dela nunca saí. Isso se chama... raízes. 



Colinenses nº 3

 

Viver a tarde 

 

O que precede faz curvar-me à tentação de ler-lhes uns versos que tive o privilégio de encontrar poucos dias atrás:

O desterro são cidades estrangeiras que já não se parecem,

Apesar de serem iguais,

São espelhos voltados sobre si mesmos, 

vazios de reflexos como poças ressecadas. 

Gostaram? Sim? Então tem mais.

Em Colina aspiro a viver  

Uma tarde mormacenta (como tantas outras)

E por isso mesmo única.

Uma tarde pretérita,

Ancestral,

Prenhe do aroma das idades

E de frágeis lembranças de momentos não vividos.

Uma tarde de saudades

As mais completas,

As mais absolutas.

Uma tarde de arrependimentos,

De aguda consciência do irrecuperável,

Da amarga nostalgia do que não tem mais volta.

Do que não é mais possível

Por ser já muito tarde.

(...)

Uma tarde de silêncios, de murmúrios e de preces.

Uma tarde de invocações e de presságios.

Uma tarde religiosa,

Contrita,

Recolhida...

Mas também luciferina,

Dionisíaca

Profana.

Uma tarde diabólica e divina: 

Uma tarde humana.

 

Viver a tarde, enquanto não vem a noite, e com ela o escuro absoluto, indevassável... 

Para os que tenham me confiado a subida honra de imaginar que fui eu quem escrevi esses versos aí, apresso-me em esclarecer que me falta talento para tanto - o talento que sobra no Claudio Guimarães dos Santos, o novo Terceiro Secretário do Consulado Geral, por cuja aquisição não posso deixar de felicitar o Cezar e todos vocês. O autor é ele. Ele é diplomata, poeta, pintor, médico e psicoterapeuta experiente. Não me perguntem por que ele resolveu entrar para o Itamaraty. Acho que ele descobriu em nós um bom mercado, ou um bom terreno de pesquisa. Cobaias... Ele já encontrou casa em Frankfurt, ali na Grüneburgweg, em apartamento onde morou Heinrich Hoffmann, importante psiquiatra de princípios do Século XX, também autor de histórias para criança muito conhecidas. Do outro lado da rua, morou Alzheimer, por quatro anos; tem placa lá... 

Coincidência, sinal, presságio? Eu chamo isso de aceno do destino.



Colinenses nº 4

 

Colina paraíso

 

A Embaixatriz Lídia, que é de Petrolina, outro dia me contou uma anedota de pernambucano que lembra muito Colina. O pernambucano, em Roma, depara com uma coluna de mármore num canto da praça, e, sobre ela, um telefone dourado e translúcido. Pergunta a um padre quê que era aquilo e o padre responde, prestativo: É para falar com o Paraíso. O pernambucano se surpreende, mas sempre prático pergunta: e quanto custa? O padre diz que a tarifa era cem dólares. O pernambucano segue viagem e nas proximidades de todo “Dom”, toda catedral na Europa encontra o mesmo dispositivo – o terminal celeste. Pergunta o preço em toda parte, mas a tarifa é única: 100 dólares. De volta ao Brasil, chega a Colina e também ali topa, no largo da matriz, no centro do coreto, com a coluna redentora, o telefone dourado. Vê o pároco Santana passando e pergunta o preço, sempre prático. O Padre responde: 25 centavos. Surpreso, o pernambucano esbraveja: Em toda parte o custo de falar com o Paraíso é 100 dólares, como em Colina pode ser só 25 centavos? E aí o Padre dá a explicação definitiva: É que aqui a tarifa é local.

Colina Paraíso? A cidade se proclama “Capital Nacional do Cavalo” mas eu prefiro outro título, que ela igualmente se dá, discretamente, mais íntimo e aconchegante: “Cidade carinho”.

Falei muito de Colina. Afinal, é o destino da hora e precisava apresentá-lo a vocês, até como um aperitivo para as visitas que espero me farão. De Frankfurt teria ainda mais a falar, esta cidade onde vivi 9 anos essenciais de minha vida, muito mais tempo do que vivi até agora em Colina – Frankfurt cidade agradável e amena, serena mas vital e vigorosa, acolhedora mas sem intimidades, cujo progresso até passa despercebido, tão perene, cotidiano, desde o passado mais remoto, que a gente até o dá por contado. Mas Frankfurt, vocês conhecem, e melhor do que eu; Colina, não.

Não é despedida, pois. Quando eu estava em Tóquio, Bettina e eu trocávamos visitas a cada dois meses sobre os 12.000 quilômetros que nos separavam. Nós contamos poder restabelecer esse “commuting” de longo curso entre Frankfurt e Colina. E para provar que não é despedida, a minha, recorro ao testemunho do José Soares, da TAM. Aqui está minha passagem da viagem aérea, de ida e de volta. (...) A ida está marcada para amanhã, e a volta, para... Ora, vamos deixar isso em suspenso.(...)

Não é despedida, pois. Só um até-logo. Mas não posso deixar de admitir, a bem da verdade, e da emoção, que é um até logo carregado de saudades antecipadas.

Muito obrigado, mais uma vez, meus amigos.


Colinenses n° 5

 

Volta sem ida   

 

Na verdade, eu nunca morei em Colina. Nasci ali, na casa de meus avós maternos, atrás da Pharmácia Santa Izabel, mas meus pais viviam em Barretos, onde o bebê primogênito foi morar. Tinha 5 anos e uma irmã, Ana Maria, barretense, quando a família mudou para São Paulo, meu pai em busca de apoio médico (perdeu a audição aos vinte e poucos anos); a segunda irmã, Hilda Maria, nasceria na Capital, em 1948.

 Não morei em Colina mas tive com ela vínculos importantes, além do elo inaugural, natalício. Ali passei muitas férias da escola, na casa de minha vó Cotinha (o apelido modesto escondia nome heráldico e sonoro, Maria Franco da Silva Prado), ou da tia Wanda (Prado Nogueira).  Fiz muito footing na praça da Matriz, pulei carnaval no Grêmio, ali na esquina da praça, namorei umas primas distantes, fui a cavalo nadar numa piscina cavada na terra, bem adiante do antigo Matadouro, no meio de um taquaral gigantesco. Lutei até box, numa empreitada avulsa de meu tio Antônio Olintho (o do Cartório), a fim de ajudar uns profissionais decadentes que vinham da Capital para ensinar o esporte e ganhar um dinheirinho. O adversário foi um menino de minha idade, cujo nome soava assim como “Raghi”. Alguém conhece? Deve ser hoje oitentão, como eu. Deu empate - imerecido, pois ele foi melhor na luta amistosa. 

Nos diversos períodos em que morei em Brasília (1961/1963, 1972/1979, 1985/1988), em toda viagem a São Paulo não deixava de passar pela cidade, para visitar o túmulo de meu avô, Urbano Prado, e ir dar um dedo de prosa com o Fiori, tentando convencê-lo a vender-me as elegantes e provectas estantes da Pharmácia, na origem supostamente encomendadas e adquiridas por meu avô – relíquias da família, por conseguinte. Jamais o convenci; quando os herdeiros quiseram vender, eu estava na Europa, sem espaço e pé-direito para abrigá-las. Agora, nem ousei perguntar ao Paulinho Frigoni, dono atual, se venderia; tenho espaço e pé direito, mas falta o dinheiro. 

Quando servi em São Paulo, instalando o Escritório de Representação do Itamaraty (uma espécie de Embaixada interna), tive contatos com a Prefeitura e o Prefeito de então, meu amigo Dieb Taha, e sua esposa, Liliana. Vim diversas vezes, trouxe minha mulher alemã e dois enteados. Almocei com eles no restaurante da Elvira.

Quando, na Alemanha, me dei conta de que era tempo de voltar ao Brasil, percebi que minha relutância com relação a essa mudança, crucial, vinha sobretudo da perspectiva de ir morar em São Paulo, Capital. A Pauliceia onde fui criado, estudei, trabalhei, casei e nasceu minha primeira filha, que admiro e quero mas onde acho impraticável morar hoje em dia (...) Amigos  sugeriram: por que você não vai para cidades como Campinas, Sorocaba, Ribeirão, onde poderá viver com mais tranquilidade e até ensinar nas Universidades?  

Não me agradou a ideia; essas cidades médias e grandes começam a sofrer de dois lados. Num processo de duas mãos, perverso e acelerado, vão ganhando as desvantagens da Capital e perdendo as vantagens do interior. Foi aí que me deu o estalo: a ir para o interior, por que não radicalizar e voltar literalmente às raízes? 

Colina!

Fiz duas viagens precursoras à cidade, antes de decidir de vez o grande salto. 

Da primeira vez, estranhei a indiferença com que a cidade me recebia. Ninguém notava que eu era de fora – ou pelo menos não dava sinal disso. Curiosidade apenas ocasional, aqui e ali. Esnobismo ante o forasteiro? Sei lá. Mas logo interpretei essa impassibilidade como um sinal positivo, embora sutil: se a cidade não me notava, ela não me considerava um adventício, um intruso. Era uma maneira elegante de receber o estranho, fazendo-o sentir-se em casa, hospitalidade inteligente e fidalga. No aparente esnobismo de sua gente vi prova de minha identidade colinense. Quando alguém porventura perguntava de onde eu era, bastava apontar para a praça da Matriz e proclamar, altivo: Eu nasci ali, na Pharmácia Santa Izabel. Não precisava explicar mais. Ninguém jamais contestou minha qualidade nata de colinense. 

Tudo isso para tentar ilustrar o paradoxo em que vivo, confuso. Andei pelos cinco Continentes, décadas de minha vida, vivi em nove países, morei em dez cidades estrangeiras e jamais em Colina; no entanto, retorno à cidade em que nasci   com o sentimento perturbador de que dela jamais me ausentei. 

Muito se usa a imagem das idas sem volta - dos movimentos sem retorno na vida, definitivos.  Em meu caso, singular, como antevi na despedida de Frankfurt, o que houve foi uma volta sem ida!

 

 

Colinenses no. 6

 

Sorvete vs. insulina 

 

Em minhas viagens precursoras a Colina, quis rever uma noite o Cine Santa Helena, cujas matinées frequentei e onde assisti a muito filme de Tarzan e cowboy. Encontrei apenas uns vestígios escuros, meio tenebrosos, de obra em construção ou demolição. Frustrado e entristecido, pensei em reanimar-me na sorveteria que existia ao lado, descendo a 7, onde tomei muito sorvete de massa e aqueles pirulitos de groselha que deixavam a boca vermelha que nem batom. Encontrei um Banco no lugar. Vislumbro, contudo, do outro lado da rua, uma sorveteria, simpática, embora de aspecto meio modernoso. Vou lá e descubro que o sorvete é de tipo caseiro, e em surpreendente gama de sabores.  

Depois de alguma hesitação, escolho o “Sonho de Valsa” – outra reverência nostálgica aos tempos de antes. A moça empina uma bola gigantesca em cima da casquinha, e lá vou eu para uma das mesinhas na calçada, ansioso a caminho da juventude reconquistada.

Mas aí me invade um sentimento de remorso: não posso ingerir tanto açúcar, do sorvete, sem previamente compensar com uma dose potente de insulina (sou diabético). Tiro a caneta-seringa do bolso, com a mão direita e certa dificuldade, pois com a outra mão segurava o sorvete, tiro a tampa, desajeitado, mas aí a bola instável despenca e se esparrama no chão.  Nem deu tempo para lamentar a perda, e pensar no que fazer, e a moça já estava na calçada, pano e escova na mão, para limpar o desastre. 

Noto então que ela vê e mira, atônita, a seringa esquisita em minha mão, agulha em riste, desembainhada. Coro de vergonha e esfrio de preocupação: a caneta injetora é coisa nova, europeia, ela pode não saber que é instrumento médico e vai pensar que é droga! Heroína em Colina! Claro que nem sabe o quê e para quê é insulina.  Vai se assustar e chamar o delegado! Explicações, talvez advogados, investigações médico-legais. Que começo infeliz, constrangedor, para minha volta à cidade-berço! Angustiado, e muito encabulado, tento justificar, sem muita convicção quanto aos resultados: “É para injetar insulina, tenho diabetes.” E aí vem uma reação inesperada: nem medo, nem acusação, nem questionamento, nem apelo à polícia, mas uma pergunta polida diante de minha patente atrapalhação: “O Senhor quer que a gente aplique?”

Gesto de espontânea solidariedade, revelador de uma hospitalidade genuína e essencial, isenta de reservas e desconfianças. 

Coisa de Colina!

Claro que não aceitei o gentil socorro terapêutico. Pedi foi outro sorvete.

 “Sonho de Valsa”, decerto.

 

 

Colinenses no. 7

 

Que bairro é este?

 

A vendedora me pergunta, ao preencher a fatura na tela do computador: em que bairro é a rua em que o Senhor mora? Recém-chegado a Colina, não tinha resposta, nunca tinha pensado nisso. A moça insiste, impaciente: o entregador precisa saber do bairro para poder encontrar sua casa! Aí me vem a ideia salvadora: “Eu moro em frente da casa do Dr. Adilson!”  A reação é positiva, e minha interlocutora dá entrada no campo relativo a “Bairro” da fatura eletrônica: “Em frente da casa do Dr. Adilson”. Literalmente.

Isso é lá nome de bairro?

Não importa: o que vale no endereço é que seja eficiente, habilite encontrar-se o destino. E a casa do Dr. Adilson é referência universal em Colina.

Como, de resto, o morador. Residir na frente dele é ter o endereço certo. 

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