Condecoração por engano?

Adhemar Chapa Preta

Topo com colega, dos amigos mais chegados, cruzando um corredor palaciano todo emproado, levando na botoeira da lapela a insígnia impressionante da Grã-Cruz do país em que havia estado acreditado. Não resisti à tentação de dizer-lhe: ”Todo cheio de si! Haja vaidade! Pois eu há vinte anos tenho uma igual e não ando por aí como se fosse o Rei do Mundo!”

Mestre da ironia, ele retrucou que eu estava maluco: só um grande Embaixador, como ele, poderia ter acesso àquela honra, justa recompensa por seus quantiosos méritos, comprovados em longo tempo de profícuo  serviço naquele país (no que não estava sendo imodesto).  

Vinte anos de Grã-Cruz! Sarcástico, questiona: como poderia eu ter recebido uma ordem naquele grau antes de chegar a Embaixador, e totalmente desprovido de méritos para tanto? Sem nunca ter estado em posto lá? Mesmo que quisessem – e não o quereriam, em se tratando de mim, pô! – não poderiam fazê-lo, pois os regulamentos o impediriam. Eu estava era inventando coisa, invejoso, com ciúmes do colega em tudo superior, na condecoração, na competência profissional, na inteligência, na bela aparência, na altura (ele é baixinho).

Não dei o braço a torcer mas, internamente, concordei com ele. Minha afirmação era absurda. Mas que as insígnias pareciam, isso pareciam.

Quando voltei para casa, fui checar. E minha impressão inicial se confirmou: as insígnias eram iguais, a da esplendorosa condecoração do amigo e a da minha supostamente módica comenda, recebida após uma missão oficial àquele país. A modéstia não me impede de admitir que daquela feita havia realizado um bom trabalho,  assaz inovador, sobretudo quando se o vê hoje, retrospectivamente. Mas não seria para tanto, de jeito nenhum. Não podia deixar de pensar: deram a condecoração, sim, mas erraram ao colocar no pacote a insígnia, que não deve corresponder ao grau escolhido.  

E fui ver o diploma correspondente - o documento definitivo. Para meu espanto – enorme, mas admito que deveras grato – leio que se tratava efetivamente de uma Grã-Cruz do Mérito, outorgada ao Conselheiro Renato Prado Guimarães pelo eminente Chefe de Estado do país em apreço, cuja prestigiosa assinatura lá figura, nítida, inquestionável. Uma Grã-Cruz vinte anos antes, eu ainda no início da carreira!

Comecei a preocupar-me por diferente razão: quê teria eu feito de errado para merecer tão singular e prematura distinção? Saí, aflito, à cata do erro. Que ninguém conseguiu explicar, até hoje. Nem em nossa diplomacia, nem na do próprio país da condecoração, que não é, por sinal, de cometer enganos. De funcionário do outro país, que consultei, muito informalmente, ouvi a admissão de que “deve ter sido erro”, assim como o conselho amistoso: “E daí? Erro ou não, parabéns! Você a ganhou e a tem. Agora a use”.

Usei-a, nas raras ocasiões da praxe diplomática. Mas para mim continua o mistério.

E a dúvida: quê que eu fiz de errado?

A não ter havido erro, a explicação mais razoável seria a de que a condecoração não me foi dada como diplomata e jovem Conselheiro, mas sim, durante importante visita de Estado, na condição de Chefe (meramente protocolar) da seção empresarial da comitiva presidencial – grupo misto,  binacional, com nomes da pesada no meio. Dentre altos executivos brasileiros e do país visitado, quem escolher para uma só comenda? Mais prudente premiar o único representante do setor público, que encabeçava a lista do Protocolo, por meras razões cerimoniais.  


Adhemar chapa-preta

Abuso de privilégio diplomático, sobretudo de trânsito e placas de automóveis, há em toda parte. O mais curioso e alentado de que tenho conhecimento  ocorreu em São Paulo, envolvendo não diplomatas ou cônsules de carreira, mas sim cônsules honorários, quase todos brasileiros credenciados por países estrangeiros. (Nessa categoria de representação, o cônsul  recebe a missão ad honorem. Podem ser nacionais do país que os acredita, ou de terceiros países, mas via de regra são cidadãos abonados do próprio país em que exercerão a função honorífica).  

Como Chefe do Escritório do Itamaraty em São Paulo, recebo certo dia carta de um delegado de polícia que estava se ocupando de acidente de trânsito que envolvia um carro com “chapa consular”, de Cônsul honorário. Ele perguntava se meu Ministério havia expedido aquela placa, se ela era válida e se o Cônsul honorário tinha as imunidades diplomáticas que estava alegando. Avisei o Cerimonial do Palácio dos Bandeirantes, que se ocupava das relações do Governo do Estado com os cônsules, consultei meu próprio Cerimonial, em Brasília, e dei a resposta inevitável, com  cópia para o Cerimonial paulista: a placa não era do Itamaraty, o Código do Trânsito não previa placa especial para carros de Cônsules honorários, os cônsules honorários não têm privilégios diplomáticos.

Foi um Deus nos acuda.

Eu já conhecia as tais placas (suntuosas, de espesso metal negro, com borda dourada, letras e números em relevo, também dourados, um brasão paulista em cores), até porque tinha dificuldade em arranjar lugar para estacionar meu humilde Ford Ka branco nas recepções oficiais, cujos pátios encontrava sempre inundados por dezenas de carrões escuros, pseudo-consulares. Mas ninguém sabia de onde elas vinham, as placas. Nosso Ministério não as expedia, o Governo do Estado de São Paulo tampouco, a Prefeitura da capital não tinha conhecimento. O Detran, na ignorância, implicava, às vezes, mas acabava tolerando-as.

Pouco a pouco foi-se apurando e desvendando o mistério. Era a própria Associação dos Cônsules Honorários que as encomendava a artífices particulares, há muito tempo, e as distribuía aos sócios mediante módica remuneração, a título de taxa de confecção. À revelia das leis do trânsito, e das normas diplomáticas,  os Cônsules Honorários expediam suas próprias chapas, com supostos privilégios, que os distinguiam de nós, e de todos os demais, meros mortais!

O que fazer diante do fato há décadas consumado? Cabia às autoridades do trânsito, claro, apreender as placas, e os veículos que as portavam, já que eram manifestamente ilegais e abusivas. Mas havia muita resistência, muita choradeira. Alguns dos Cônsules eram gente de alta projeção na sociedade paulista. Muitos tinham alguma influência política no Estado.

A um diretor da Associação emplacadora, que veio chorar as mágoas do corpo honorário perante mim, o carrasco inesperado e involuntário depois de tanto tempo de imperturbável complacência, assegurei, magnânimo: “Vocês me mostrem a lei que autoriza as chapas que incontinenti eu me empenharei junto a meu Ministério para que ele próprio as emita para vocês, em substituição às que vocês fabricam”. O cônsul lacrimoso contou-me então a origem “oficial” do emblema contestado. Num dos Governos de Adhemar de Barros, os cônsules honorários desenharam uma placa, mandaram confeccioná-la e a levaram, numa bem regada festa, para o Governador ver. Ele disse que era bonita e os cônsules perguntaram: “Já que o Senhor gostou, podemos usar?” Adhemar teria acenado que sim. O diploma legal em que se fundavam as placas era, pois, o assentimento benevolente e festivo do Governador. E por dezenas de anos as negras chapas adhemaristas foram usadas, e suas supostas regalias invocadas e respeitadas.

 O Detran, açulado, pesquisou e encontrou cônsules honorários com até 6 carros equipados com  as placas de prestígio. Centenas de multas não cobradas foram descobertas, por infrações cometidas por motoristas supostamente imunes em carros “consulares” - muitas delas graves. Houve reuniões no Palácio Bandeirantes, com representantes de todo o Corpo consular.  Alvitrou-se a alternativa de uma placa oval, menor, “oficiosa”, com a identificação consular, CC, como um escudo,  paralela à placa regular, do comum dos mortais, mas isso não era suficiente para os honorários. Havia animosidade, acrimônia.

A ilegalidade tardiamente descoberta incomodava. A perda dos privilégios irregulares, ainda mais. E a culpa não era da Lei, mas sim de quem (eu) topara com seu descumprimento... Pau nele! O que eu sei é que também dei muita paulada de volta. Só me arrependo da que recebeu o Decano do corpo consular, de carreira e inocente, ao ousar contestar meus argumentos, canhestramente, por mera solidariedade de ofício aos colegas honorários. Parece que pouco familiarizado com a  rudeza ocasional, embora educada, das negociações “diplomáticas”, ante réplica vigorosa minha estremeceu e empalideceu a ponto de meus amigos do Palácio acharem que era enfarte; eu também,  por sinal, impassível mas em pânico.  

Depois, fui removido. Como ficou o assunto? Brasília de Arruda Botelho, na ocasião a competentíssima Chefe do Cerimonial paulista, que administrou o problema do lado do Governo estadual e herdou o abacaxi, me esclareceu que, ao cabo,  as chapas pretas do Adhemar foram mesmo suprimidas. A gota d’água foram razões de segurança: sem fonte expedidora segura, sem registros para controlá-las, como saber que as placas são “autênticas”, isto é, identificam carros realmente pertencentes  a cônsules honorários?

Não sei como funciona no Brasil, mas na Europa a posição de cônsul honorário é muito cobiçada por empresários e demais gente de dinheiro, pois permite a dedução de gastos com a atividade consular para fins de redução de impostos, além das vantagens de prestígio aparentes no título. O proprietário do apartamento que eu alugava em Frankfurt, como cônsul, era o Cônsul-Geral Honorário de Sierra Leoa – ele riquíssimo, o país dos mais pobres do mundo. Há mesmo quem ganhe dinheiro como intermediário das nomeações compradas a países de menor porte, sendo até famoso alemão do jet-set que se especializa abertamente nessa corretagem, e também na de outras honrarias e condecorações para quem esteja interessado.

 Mediante remuneração, claro.

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