De algodão e cristais

As metáforas podem comandar a política, mesmo a História. O Uruguai foi batizado por Lord Ponsonby, ao nascer, em 1828, como “um algodão entre dois cristais” – um “estado-tampão” (outra metáfora) entre o Brasil e a Argentina, com respeito aos quais sua política externa oscilaria como um “pêndulo” (haja metáfora!). Na década dos 80 (do Século XX) surgiu a imagem mais altiva e vigorosa do Uruguai “bisagra”, a dobradiça indispensável para articular o Brasil e a Argentina em seus esforços de integração regional. 

Pode-se questionar a validade e a consistência histórica desse suposto papel amortecedor e articulatório, nele igualmente implícita a alegada vocação para uma política externa calculadamente “pendular”. Pode não ser essa, tampouco, a percepção dominante nos demais vértices do falacioso triângulo, no Brasil ou na Argentina (para começar, não é a minha). Mas gerações sucessivas de uruguaios acreditaram nesses clichês quase que como a expressão retórica de seu destino nacional.  "No hay uruguayo que no sepa, en el fondo del corazón, que Uruguay nació a la Historia como "Estado tapón" (Alberto Methol Ferré, "Uruguay como Problema",  Diálogo, 1967).

Fiéis ou enganosos, os clichês históricos teriam servido para dar ao Uruguai o sentimento de uma certa independência nas relações com o Brasil e a Argentina  - a confiança de que, embora territorialmente menor, dispunha de um espaço político-estratégico que lhe permitia manobrar junto a um e outro vizinho, ou entre eles, habilitando-lhe defesa suficiente de seus interesses nos confrontos eventuais.  Mais intimamente na psicologia local, a suposta condição de "tertius" independente e indispensável talvez tenha mesmo gerado uma vaga veleidade de supremacia sobre brasileiros e argentinos - singular hegemonia de país menor, fundada na presunção de sua necessidade para os maiores, na suposição de uma certa capacidade de mediação/ingerência e  na certeza da intocabilidade.

A notável aproximação entre o Brasil e a Argentina, na segunda metade da década dos 80, comprimiu o espaço para as manobras do hipotético pêndulo uruguaio, confundindo sua geometria maniqueísta e gerando perturbadoras ansiedades no país, a juízo de muitos uma autêntica crise de identidade nacional. Embora de data anterior, estas frases do mesmo Alberto Methol Ferré, citado acima, seriam pertinentes nesse contexto : "Qué significa entonces el Uruguay como Estado tapón? Qué taponéa y para qué? Al variar los contextos históricos varia su significado? Acaso ha dejado de ser Estado tapón? Acaso sus funciones son otras? (...) Es en ese sentido que entendemos la pregunta primordial sobre Uruguay en Latinoamérica y el mundo. Es, además, la pregunta que condiciona todas las preguntas". 

Não só o pêndulo se imobilizava. À falta do que separar e amortecer, também murchava a imagem batismal de Lord Ponsonby, do algodão entre cristais. Temia-se no Uruguai uma aproximação bilateral dele excludente, e não se escondiam preocupações, ciúmes e ressentimentos – que brasileiros e argentinos logo buscaram fraternalmente abrandar, abrindo caminho para a participação do vizinho no Tratado de Assunção e no MERCOSUL.

Nesse meio-tempo, numa conversa amena entre colegas sobre medidas em favor do parceiro inquieto e queixoso, houve quem recordasse expressões na imprensa local daqueles sentimentos e o temor nelas manifestado de que o Uruguai talvez não merecesse mais tanta atenção dos vizinhos, uma vez que sua relevância regional perdera a substância medianeira, como algodão entre cristais. Amigo brasileiro, discordando, acabou também escorregando feio na retórica, mas em boa causa - a do Uruguai, por ambos, Brasil e Argentina,  admirado, respeitado e querido.

- “Por isso mesmo temos de fazer alguma coisa. O Uruguai não é mais o algodão entre dois cristais. Ele passou a ser um cristal entre dois algodões! E os algodões somos nós!

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