A frase cala-boca do Rei Juan Carlos, dirigida a Hugo Chávez, correu o mundo e foi fonte de muita atribulação diplomática nas relações entre a Espanha e a Venezuela. Mas antes disso houve dia em que o próprio Rei teve de calar-se, no Brasil, por iniciativa própria e culpa que não era sua.
E quem o “calou”, involuntariamente, foi Mario Covas. Justo ele, neto de espanhóis e admirador genuíno e afetuoso do monarca.
O Rei estava de visita oficial ao Brasil, com a Rainha Sofia. Em São Paulo, recebeu todas as honras, como protocolarmente devido e sem dúvida àquela altura merecia. No jantar no Palácio Bandeirantes, o Governador vai além da conta, e não só no cenário e no serviço.
No mais belo discurso de saudação a dignitário estrangeiro que jamais ouvi em minha vida repleta dessa oratória (decerto que com contribuição particularmente inspirada de meu amigo Zelito Salles, o competente e perene “ghost-writer” dos Governadores paulistas), traça um perfil ao mesmo tempo erudito, intelectual e emocionado da Espanha e de sua presença no mundo e no Brasil. Vai dos Descobrimentos a Picasso, lembra Goya, Garcia Lorca, Falla, apela ao imaginário-ideário de Cervantes para ilustrar as relações dos dois países, orientadas “não para viver a luta vã contra os moinhos de vento, mas sim para concretizar o sonho definitivo de Dom Quixote, que é o da preservação dos bons princípios da cortesia, da coragem e da justiça”. Não esquece Anchieta e os primeiros povoadores espanhóis (“...os laços que nos unem são tão antigos como a história de São Paulo”), recorre à poesia de João Cabral de Mello Neto, a ensaios de Cecília Meirelles.
De João Cabral, cita os versos sevilhanos do
Saber existir nos extremos
Como levando dentro a brasa
Que se reacende a qualquer tempo.
A propósito dos quais diz, empolgado: “Brasa acesa no afã dos guerreiros que reconquistaram o país aos mouros; no destemor dos descobridores dos novos mundos; no ardor místico de Santa Teresa de Ávila; na veemência dos Desastres da Guerra de Goya; em Guernica, de Picasso; no Amor Brujo de Manuel de Falla. Na obra de tantos artistas. Na vida de tantos homens comuns”.
“Pois não se é espanhol sem paixão” – arremata, em retórica de brasa também acesa, apaixonada.
Tudo numa linguagem elegante e convincente, comedida mas emotiva e eloquente. Recorda até o Corínthians, preferido da colônia espanhola no Brasil. Com respeito ao próprio Rei, afirma que “não só a Espanha, mas também o nosso continente tem um débito com Vossa Majestade”, pois seu empenho em defesa da democracia e da liberdade na Espanha “foi decisivo para que os povos latino-americanos caminhassem no mesmo sentido, ampliando seus direitos e sua prosperidade”. Galante, após falar da Universidade de Salamanca (“de onde, algum dia, se levantava a ciência, como o sol” - Cecília Meirelles) e de Miguel de Unamuno, homenageia a visitante a seu lado com oportuno jogo de palavras e preciosa rima: “Feliz a Espanha por contar com homens e mulheres assim. E de ter como rainha a sabedoria, que é o significado da palavra grega Sofia”.
Hora do Rei responder. Tira os papéis do bolso interior do paletó, e começa a leitura, que logo se revela forçada, penosa. A Chancelaria espanhola havia preparado um texto correto, mas convencional e burocrático, mesmo primário, sem a altura a que o brilhante discurso de Covas havia guindado a ocasião. Erro de protocolo: há sempre que perguntar como será o discurso para o qual se deve preparar uma resposta. À metade da segunda página, o Rei, constrangido mas com fidalga elegância, dobra os papéis, devolve-os ao bolso, e improvisa, conformado, um fecho banal de agradecimento às palavras inspiradas de seu anfitrião.
Se calló El Rey.
Mas esse não seria o inesperado maior da visita. No dia seguinte, cedinho, na Base Aérea de Cumbica/Guarulhos, chega o cortejo do monarca, que tomaria um avião militar para seguir na viagem brasileira. Seu carro estaciona, ele desce, junto com a Rainha, o chofer rapidamente acelera, a fim de abrir espaço para os carros que vêm atrás no comboio. De repente, o Rei começa a correr, desabalado. A correr em perseguição à viatura que o havia conduzido, batendo com a palma da mão direita no porta-malas, depois nos vidros traseiros, logo que os alcançou, uns quinze metros adiante. A segurança nem teve tempo de mover-se. Assustado, o motorista para, abre a porta para ver o que acontecia; o Rei lhe estende incontinenti a mão e o cumprimenta, efusivamente.
Ele só queria não deixar de agradecer ao motorista os bons serviços que lhe havia prestado durante a estada em São Paulo.