Foca sem foco

Lambe-lambe da notícia

Entrei nas “Folhas” na segunda metade da década dos 1950, no primeiro concurso de jornalista que o jornal promoveu (acho que pioneiro em todo o Brasil), por iniciativa do José Nabantino Ramos, dono do jornal e dos maiores inovadores de nossa imprensa no século passado.  Como repórter, fazia muita viagem ao interior de São Paulo, do Paraná, de Minas, sempre acompanhado de um fotógrafo da experiente equipe do jornal. Os Pirozelli da real estirpe (o Piro I, Antonio, que deu até nome de rua em São Paulo, e Ângelo, o Piro II), o Ronaldo Batista, o Gil Passarelli – gente que vinha ainda do tempo da Speedflex, mas nem por isso menos alerta e atual.  Artistas da foto, mas também repórteres argutos, com faro apurado, capazes de cheirar notícia em cada fato.

O foca (para os que não o saibam, esse simpático animal dá nome ao calouro da notícia) se sentia pouco à vontade entre tão augustos veteranos, sobretudo quando lhe davam uns trotes de iniciação, invariavelmente benignos mas nem por isso menos embaraçosos e irritantes para o iniciante. Com a agravante de que nas provocações havia um quê de desafio a minha condição de filho de Mario Mazzei Guimarães, o respeitadíssimo, mui admirado mas igualmente pra lá de exigente chefe de todos nós, Redator-Chefe do jornal.

Avivava ainda aquele meu constrangimento um certo sentimento preconceituoso e elitista de superioridade desacatada. Naquele tempo, o texto imperava sobre a imagem, meramente ilustrativa, o repórter era o intelectual, com suas láureas acadêmicas, enquanto o fotógrafo era em geral o proletário autodidata – um artesão subalterno, embora indispensável, na hierarquia da reportagem.

O fotógrafo de jornal era tratado meio como o lambe-lambe da notícia.

Certo dia, não havia fotógrafo disponível para a viagem. Mandaram-me assim mesmo. Resolvi levar comigo uma singela Ciroflex, que havia ganho não sei de quem, imitação americana 6x6,  muito barata,  da Rollei alemã. E tirei minhas fotos de amador. Na volta, ofereci, junto com o texto, o filme de minha “reportagem” fotográfica, alegando timidamente que talvez pudesse servir, em substituição ao trabalho profissional que na ocasião não havia sido possível. Quem não tem cão...  Embora ligeiramente  desfocadas, as fotos passaram no crivo da chefia da reportagem e foram publicadas.

Virou praxe. As viagens saíam mais baratas, com o repórter assumindo também as funções do fotógrafo. Tão mais barato era o esquema, que a Direção do jornal se ofereceu para financiar-me a aquisição de uma máquina de verdade, a cobiçadíssima Rolleiflex. Comprei-a numa portinha meio de contrabando, na Rua 7 de abril, do lado direito de quem sobe da Xavier de Toledo, com fotômetro pioneiro e  objetiva Planar 1:3,5. Passou a ser minha companhia obrigatória nas viagens.

Não custou muito, porém, para eu perceber a besteira que havia feito: a máquina era boa companhia, mas melhor companhia seriam os fotógrafos, cuja experiência tanto me havia ajudado antes, mesmo em minhas funções de texto.


Lambendo o Esso

De repente, ouço rumores alvissareiros: a direção do jornal estaria considerando apresentar matéria minha como candidata ao Prêmio Esso – o galardão máximo de reconhecimento à imprensa na época.

Fiquei excitadíssimo.

Não podendo segurar minha ansiedade, fui ao Chefe da Reportagem (não me lembro ao certo se o Hideo Onaga, àquela altura na “Folha da Tarde”, ou o Célio Vieira, acho que da “Folha da Noite”) e perguntei: “Tão dizendo aí que vocês estão pensando em mandar matéria minha pro Prêmio Esso. Não acredito. É verdade?”. Meu interlocutor, certamente condoído ante minha mal disfarçada aflição, respondeu: “Tem gente pensando nisso. Quem sabe?” Animado, e incontido, perguntei mais, plantando verde para colher maduro, como minha vaidade juvenil exigia: “Mas você acha, mesmo, que dá pra tanto? Você acha que meu texto está à altura do prêmio Esso?” Veio aí a resposta desprimorosa, e devastadora: “Que texto, mané texto, sô. Estamos pensando em mandar é as fotos!”. Fiquei magoadíssimo com o rebaixamento inesperado. Eu, o repórter da redação inspirada e ambiciosa, frequentador das vetustas arcadas de nossa Academia, ser apresentado ao Prêmio Esso pela autoria ocasional de umas fotos menores – como se eu fosse um lambe-lambe dominical da notícia!

Ressentido, não perguntei mais, esqueci o assunto e nem sei o que houve do propalado propósito da candidatura.


Revelação tardia

Hoje em dia, amadurecido, e convencido de que a imagem pode ter mais arte e mérito do que o texto, tento recordar aqueles tempos e reconstituir as circunstâncias em torno do prêmio não pleiteado.

E acho, retrospectivamente, que a tal imagem de que, suponho, haviam cogitado, até que teria merecido candidatar-se ao Prêmio... e ganhá-lo! Posso estar enganado, mas tratava-se de uma foto que tirara, já com a Rolleiflex, numa carreata (mais para caminhão, camionete, jipe,  trator, carro-de-boi do que para carro automóvel) da ”Marcha da Produção”, movimento da cafeicultura paranaense que chegou a adquirir tons radicais em favor da eliminação do “confisco cambial” – a diferença entre a taxa de câmbio especial para as exportações do café e as utilizadas para as demais exportações e as importações, sensivelmente mais elevadas.

Ajoelhado na carroceria trepidante de um caminhão, retratei o Bispo de Maringá, D. Jaime Luís Coelho, de pé num jipe que vinha atrás, com os paramentos de sua condição episcopal, abençoando a multidão, solene, os braços abertos para o povo que ladeava a estrada nua e poeirenta do rubro solo norte-paranaense. Bela imagem, em branco e preto, de um prelado brasileiro, do interior, já abertamente envolvido com questões políticas, econômicas e sociais em 1956 (ou 1957?), antecipando-se anos  a João XXIII e ao Concílio Ecumênico!

Uma foto poderosa, precursora e propiciatória da História por vir, simbólica do futuro.

Outra hipótese que me ocorreu é a de umas fotos de um grupo de retirantes que encontrei, acampado num eucaliptal à beira de rodovia na Média Sorocabana. Velhos (muitos), adultos homens (alguns), mulheres e crianças (muitas). Perguntei para onde iam; responderam que estavam aguardando condução prometida para Jataí. Não conhecia e perguntei: Onde fica? E aí veio a resposta comovente: Nóis num sabi... Tirei umas fotos daquela gente perdida, de suas redes, de seus bules e panelas fervendo água, dos meninos barrigudos. Deu matéria na “Folha da Tarde”, se bem me lembro com  título barroco e piegas, mas tocante: “Os que vão para Jataí e não têm destino”. No primeiro posto da estrada, parei e mencionei o grupo ao proprietário, que tampouco sabia onde era Jataí mas me prometeu que iria dar uma olhada no povo a caminho do ignorado.

Foi?

A imagem triunfa agora e muitas vezes obscurece o texto na notícia. Cabe quase dizer que este pode ser subalterno daquela - um esclarecimento do que a imagem de per si não deixa de imediato patente.

Revelação tardia mas ainda oportuna na câmara escura da vida.


Foco no além

Por tudo isso, continuo a guardar zelosamente minhas câmeras, desde a Ciroflex inaugural até as digitais contemporâneas, embora já começando a passá-las à descendência, em legado antecipado.  E passo a experimentar satisfações tardias na arte que na adolescência desprezara.

Década atrás,  minha mulher, médica, levou seus pacientes a participarem da comovente “Race for Cure”, em Frankfurt. Eu fui como espectador e aproveitei para tirar umas fotos com minha Panasonic  “Lumix” titular de então. Os pacientes de minha mulher gostaram tanto de sua participação que se reuniram e editaram uma publicação, de muito gosto, com as fotos que eu tirara deles e do generoso evento. Deu-me grande satisfação ler, na contracapa, este crédito trivial, em alemão: “Fotos de Renato Prado Guimarães”. Tanta satisfação quanto a que tive ao me ler autor-escriba das “Crônicas do Inesperado”.

Expoente em meu acervo de velhas máquinas é uma “Leica” ainda da década dos 1950 (ou 1940?), esta sim, legítima, inconteste ganhadora de Prêmio Esso: foi presente de meu pai, também assíduo repórter-fotógrafo, que a usou em sua celebrada série “Um Rio Chamado Chico”, ganhadora do máximo prêmio em 1959. Pena que há muitos anos não funcione, o cilindro da clássica objetiva Summitar 1:2 entortado por alguma queda. Tentei o reparo, mesmo em sua  Alemanha natal, sem êxito. Viu muito do mundo nas mãos de meu pai, mas hoje jaz em minha estante-museu, cega sem remédio - ou só caolha, quem sabe?

Talvez devesse tê-la devolvido ao proprietário original,  para assisti-lo no além inelutável.  Pois “(...) da noite não se tem notícia. E dela, a rigor, não se volta. Com o mergulho nela, ensaiado durante a vida inteira, carrega-se o mundo”; mas mesmo se “na noite se penetra sem consciência transmissível”, nela “pode haver vida que talvez permitisse uma cobertura de truz“  (do eterno jornalista Mario Mazzei Guimarães, em “Notícia do Mundo”, inédito).

Foco no além, objetiva cravada no infinito insondável da dimensão póstuma...




Troféu espacial

Já de Brasília, na Sucursal do Estadão:
 
Yuri Gagarin, o primeiro astronauta, visitou Brasília em agosto de 1961. Diria depois que se sentira ali em outro planeta, perturbado pela arquitetura visionária de Oscar Niemeyer,  do urbanismo extravagante  de Lucio Costa, da infância promissora dos jardins de Burle Marx.  Mas sua chegada foi bem terrena e brasileira: uma imensa bagunça na ainda improvisada Base Aérea de Brasília.

Lá pelas tantas, começou mais um daqueles entreveros típicos de aeroporto antigamente, entre a imprensa e a autoridade do momento, no caso a Polícia da Aeronáutica - aquela tentando, aguerrida, chegar ao ilustre visitante, esta procurando zelosamente protegê-lo, todo mundo com razão, cumprindo o dever do respectivo ofício. Repórter foca mas solidário, já iniciado nesse jogo fútil e invariavelmente sem ganhadores, mesmo sem grande vontade entrei no rolo, solidário, levei uns tantos empurrões, dei outros. Mas logo a briga amainou, sem vítimas, que eu recorde.

Já me preparava para deixar a Base quando se postou a minha frente um jovem Capitão, poucos anos mais velho do que eu.  Descontraído, me pergunta, com naturalidade: “Que  é que você tem aí na mão?”.

Olho para a mão esquerda, ainda crispada pela adrenalina do conflito, abro-a e vejo com espanto que nela segurava uma divisa de Terceiro-Sargento, que decerto arrancara  de alguma manga, involuntariamente, no empurra-empurra precedente.

Que laurel embaraçoso!

Não houve nem tempo para pânico. Sem saber bem o que fazer, mas deveras constrangido, estiquei a mão para o Capitão, a fim de devolver-lhe o incômodo despojo da batalha, que presumia quisesse resgatar. Mas o militar, sorrindo, não aceitou: “Deixa pra lá. Guarda de lembrança. Como troféu de guerra. E o primeiro no planeta de guerra espacial!”

Humor e civilidade, além de bom-senso. Era 1961. Três anos mais tarde, seria muito diferente.

Não guardei a lembrança/prova do crime. Na primeira curva do cerrado, joguei-a pela janela do fusca. De repente o cara se arrepende, o chefe dele fica sabendo e implica, a intendência reclama do prejuízo...


Tico-tico bicou Louis Armstrong

Na linha de frente das batalhas de aeroporto naquele tempo, do lado da imprensa estavam sempre os fotógrafos e os radialistas, estes os primeiros na vanguarda, pois tinham de chegar mais perto.  O incidente mais sangrento que presenciei foi do renomado Tico-tico, legendário locutor da rádio Bandeirantes, ferindo com seu microfone imprudente a boca eternamente inflamada de Louis Armstrong, em Congonhas.

No afã de ouvi-lo falar, no empurra-empurra de sempre, o Tico-tico tropeça e seu alentado microfone bica os lábios sensíveis e milionários do pistonista genial - a “personificação do jazz”.

Vi respingar vermelho no lenço branco do músico!



Ricupero 2 x  barrado

 Falando ao telefone do “cercadinho” do Comitê de Imprensa do Senado, sou dos primeiros a saber da renúncia de Jânio. O presidente da Casa, Auro Moura Andrade, sai de seu Gabinete e anuncia, nervoso, o gesto inesperado, do qual acabara de ser informado pelo Planalto. Muita agitação, tentativas de explicação, especulações em torno do que viria. Ansiedade. Medo.

Resolvi dar um pulo à Câmara, a ver como estavam as coisas lá. No caminho, junto a uma das grandes portas de vidro da fachada do Congresso, topo com cena inusitada. Por precaução diante da renúncia perturbadora, de consequências imprevisíveis, a Segurança do Congresso havia fechado todos os acessos e estabelecido um crivo para os que desejavam entrar. E tentando fazê-lo vejo Rubens Ricupero, então jovem Terceiro Secretário lotado no Gabinete em Brasília de Afonso Arinos, Ministro das Relações Exteriores. Conhecia-o por também fazer a cobertura do Itamaraty para o Estadão – e ainda, claro, pela fama de inteligência brilhante, invulgar nitidez de expressão e vasta cultura que deixara em São Paulo e já confirmava nos primeiros degraus de sua esplêndida carreira diplomática.

Aproximo-me e me dou conta de que Ricupero havia sido detido!

Portador de mensagem urgentíssima de seu chefe, o Ministro, para Ranieri Mazzilli, o Presidente da Câmara, a Segurança desconfiou de seus propósitos – agente provocador? - e o segurou. Ele me explicou a situação e pediu ajuda. Fui de imediato ao Plenário da Câmara, em agitada sessão, e falei com o Secretário da Mesa, narrando a situação constrangedora. Ele cochichou ao ouvido de Mazzilli, que ordenou imediatamente a seus assessores que trouxessem o jovem diplomata a sua presença. Ricupero pôde, assim, cumprir sua missão: entregar ao Presidente da Câmara o telex recebido do Rio com apelo do Chanceler Arinos para que a renúncia do Presidente fosse reexaminada e rechaçada, para o bem do país.

Há quem diga que mais tarde Ricupero foi outra vez barrado, já Ministro da Fazenda e para missão muito mais alta – suprema!
 
Há outras versões daquela primeira obstrução "chega prá lá" do Rubens. Mas nenhuma desmente a minha, de tantos anos - décadas - atrás mas bem nítida em minha memória (que vem apresentando algumas falhas, admito, mas só na memória curta). 

Ricupero foi um dos que, no Gabinete do Ministro em Brasília, me convenceram a prestar concurso direto para o Itamaraty, meses depois; se bem relembro, foi ele próprio quem me inscreveu! Fui então um ativo protagonista de notável feito da incipiente e primitiva Capital, que teve taxa altíssima de aprovação no exame de seleção prévia para as vagas do concurso promovido pelo Instituto Rio Branco, realizado também, aquele teste preliminar,  no Rio, em São Paulo e nas principais capitais estaduais. Apesar de tão incipiente em sua educação e sua cultura, Brasília alcançou no concurso a proporção mais elevada em todo o País – arrasador recorde histórico: 50% de aprovação! O Rio, que liderara sempre, ficou com uns 30% decaídos. 

Decerto,  em Brasília éramos só dois candidatos...


Benedito emudecido

Na mesma tarde da renúncia, ainda no calor dos acontecimentos, Benedito Valadares, o Senador mineiro, raposa política sabida  e reconhecida, sobe apressado e  meio arfante a rampa do Congresso, vindo do Palácio do  Planalto. Traz novidades. Logo parlamentares e jornalistas, eu dentre estes,  o cercam e ele passa, aflito, as informações que trazia, e que acrescentam à preocupação geral ante o acontecido e o que poderia ainda ocorrer.

De repente, Benedito se cala e ninguém consegue fazê-lo retomar sua fala esclarecedora. Parlamentares importantes, colegas dele, também de Minas (Milton Campos, Camilo Nogueira da Gama, não me lembro mais), insistem:

“- Fala homem! Estamos todos ansiosos!”.

Ao que Benedito retorque:

“Não abro mais a boca.  Vocês estão prestando muita atenção!”

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