Não obstante o ressaibo ocasionalmente amargo de momentos antagônicos do passado, há simpatia patente e espontânea entre uruguaios e brasileiros, a qual se traduz com naturalidade no relacionamento cotidiano - e não só na fronteira, onde a convivência estreita, amistosa e solidária configura padrão talvez singular no mundo. Ali aprendi que “solo quién vive en la frontera sabe que la frontera no existe”. As famílias se estendem e integram com naturalidade de um e outro lado da linde. São incontáveis os exemplos históricos de ilustres parentescos, e há vínculos do passado com relevantes expressões contemporâneas - às vezes inesperadas.
O ex-Chanceler Sérgio Abreu é descendente direto do Marechal José de Abreu, Barão do Cerro Largo, herói brasileiro das guerras da Cisplatina, que faleceu em luta contra argentinos e uruguaios em Passo do Rosário - ou Ituzaingó. Morreu de fogo amigo, alcançado por bala brasileira, em incidente estranho da confusa batalha. A cavalaria de Abreu mesclou-se com a de Lavalleja, formando uma massa difusa, que acabou resvalando no terreno em direção a uma formação de infantaria brasileira. O Comandante desta, General Calado, não teve alternativa senão a de atirar. Na carga morreram muitos uruguaios e brasileiros, lado a lado, entre eles o Barão, que completava sua 19a. batalha contra os vizinhos do Sul. De publicação militar gaúcha: "Foi preciso uma bala brasileira para acabar com o velho e legendário Barão do Cerro Largo!"
Por mim convidado e por determinação do Presidente Lacalle, Abreu foi oficialmente a Alegrete, cidade fundada pelo tataravô, e homenageou o antepassado ante o busto existente no 6º Regimento de Infantaria Blindada, ali sediado e denominado justamente "Regimento José de Abreu". Reciprocamente, recebeu solenes honras militares de toda a guarnição da cidade e homenagens da Prefeitura e da Câmara de Vereadores.
As cerimônias tiveram perfeito transcurso, apesar dos aspectos decerto delicados de uma homenagem que envolvia um Ministro de Relações Exteriores uruguaio e antepassado protagonista destacado de sangrentas lutas contra seus compatriotas. Do ponto de vista diplomático, apenas foi motivo de passageiro susto, para o Chanceler e o Chefe do Posto, que o acompanhava, aguerrido discurso de vereador de Alegrete, que começou a evocar, em oratória grandiloquente, as glórias gaúchas nas duras batalhas travadas por brasileiros, argentinos e uruguaios na região da fronteira. Sua conclusão foi no entanto inteligente e pacificadora: os gaúchos do Brasil, do Uruguai e da Argentina são, todos, a mesma gente, irmãos e amigos de igual origem, equivalente formação e aspirações afins; se lutas um dia tiveram foi porque os "imperialismos ibéricos e inglês" os manipularam perversamente.
Como Abreu se queixasse de que Lacalle às vezes zombava daquelas origens brasileiras, que desvirtuariam sua essência uruguaia, sugeri que lembrasse o então Presidente de que tampouco estava isento, ele, de um passado brasileiro: seu avô, grande patrono e guia político, Luís Alberto de Herrera, fundador da corrente "herrerista" que liderava no Partido Nacional, teve uma tia-avó (Rosa de Herrera) casada nada menos do que com Lecor, o vilipendiado opressor e por muitos anos Comandante luso-brasileiro da ocupação da Banda Oriental. Abreu ignorava aquele pouco difundido laço e me disse, com irônico regozijo, que não deixaria de recordá-lo ao Presidente. O Chanceler me contou depois que de fato comentou o inefável vínculo com Lacalle, que admitira dele haver registro na memória da família. Teria então observado: “Nadie es perfecto...”
Também o duas vezes Presidente Sanguinetti tem ascendência brasileira: por parte de mãe (Cairolo) é bisneto de "Chiquito Saravia", "lanza brava" das lutas entre "blancos" e colorados em fins do século XIX, que também combateu no Brasil, ao lado dos irmãos Gumercindo Saraiva e Aparicio Saravia, nas revoluções federalistas dos anos 90. Aparício se transformaria no grande lider "blanco" do Norte uruguaio e paladino daquele Partido na rancorosa confrontação armada e política com os "colorados", nos quais se integrava o Presidente contemporâneo.
Essa ascendência de Sanguinetti era pouco conhecida no Uruguai. Eu próprio dela só tivera ciência por publicação secundária, de circunstância e escassa circulação ("Los Presidentes del Uruguay", Montevidéu, 1990). De passagem por Porto Alegre, contudo, em 1995, o Presidente não apenas proclamou seus vínculos com os Saraiva brasileiros, como também chamou atenção para o lado "blanco" em sua genealogia - ele, líder do Partido Colorado, a facção rival desde os primórdios da nação uruguaia. O imperativo da "coalizão" dos partidos tradicionalmente antagônicos, ante a iminente “tripartição” – àquela altura - do poder político no país, pode ter dado a oportunidade para se aflorarem circunstâncias do passado talvez antes politicamente incômodas.