Sadomasoquismo no Showroom, Perfídia do “Auto-Complete”

Para o sucessor, o antecessor é sempre um incompetente; para o antecessor, o sucessor não passa, invariavelmente, de um ingrato. No Itamaraty, cioso de suas tradições de continuidade e permanência, sempre se procura tratar com elegância essa incômoda equação, tão frequentemente presente nas mudanças de comando. Pessoalmente, sempre procurei esquivá-la, pondo empenho em respeitar a administração anterior e criar as melhores condições para a seguinte. Nunca me arrependi. Mas em pelo menos uma vez quebrei a cara – dei com os burros n’água, para usar expressão mais de minha geração.

Nova York, princípio dos anos 80. Brazilian Government Trade Bureau, antiga e venerável repartição brasileira, nascida nos anos 40 e principal instrumento do Itamaraty para o apoio às exportações brasileiras nos EUA. Ligado, por razões administrativas, ao Consulado-Geral em Nova York e chefiado por diplomata. Como de hábito, ao assumir determinei que a programação da administração anterior deveria continuar a ser implementada, e pelos mesmos funcionários a quem cada evento havia sido antes confiado. 

Um dos primeiros projetos era uma exposição de roupas de couro no Showroom do Trade Bureau – anexo utilíssimo, cuja instalação se devera a iniciativa do antecessor, dele muito cioso. Acompanhei a preparação, à distância; muita atenção e questionamentos pareceriam um desrespeito à gestão anterior, de que o evento emanava, e cujo titular havia pessoalmente selecionado e contratado as duas funcionárias responsáveis, ambas aplicadas e inteligentes.

No dia aprazado, ocorreu o evento, mas o enfoque não foi o esperado: as roupas de couro brasileiras foram apresentadas em contexto de moda sadomasoquista, na linha do movimento que começava a tomar corpo na Nova York de então, mas nada a meu gosto, e, decerto, tampouco ao gosto de meu Ministério ou do Governo da época. Quase uma provocação. Não gostei, mostrei meu desagrado às responsáveis, preocupei-me, claro, com as repercussões.

Estas tardaram quase três décadas para aparecer. E apareceram, inesperadamente, justamente pela pena de meu antecessor, que em livro de histórias da diplomacia e do Itamaraty, lançado em 2.008, descreve o incidente em pormenores, deliciado, e diz que o novo Chefe, “traumatizado, em vez de supervisionar a organização de eventos futuros, optou pela saída mais simples e cômoda, acabou com o Brasil Showroom, enchendo-o de mesas de funcionários”.

Admito o traumatismo (não era para menos!), mas não as consequências apontadas. O incidente não prejudicou a continuidade da programação da gestão anterior, nem nova programação para o Showroom, ainda mais intensa e diversificada. Em razão do crescimento das atividades de informática do Trade Bureau (para o qual a gestão do antecessor fora aliás de grande valia, inclusive com vistas à implantação do SPED - a Intranet antes da web de que se vai falar igualmente nestas Crônicas), foi necessário reajustar a distribuição dos serviços e deslocar para aquele espaço dois funcionários e algumas atividades de atendimento direto ao público, assim como montar ali pequenos escritórios modulados, facilmente removíveis, para encontros reservados entre exportadores brasileiros e interessados norte-americanos em adquirir seus produtos ou representá-los no mercado local. 

Nada disso impediu o Showroom de continuar abrigando exposições temporárias: o mostruário de  cada exportador que usava o recinto, e outras, mais amplas, como, por exemplo, exibição de designer brasileiro de jóias (a cuja inauguração o Pelé esteve presente), e apresentação de biquínis  brasileiros, com direito até a correto desfile (que terá contribuído para exorcizar o acidente sadomasoquista...). O Showroom passou igualmente a acolher outros eventos de interesse da crescente comunidade em Nova York (começava a migração dos mineiros, os bandeirantes daquela terra) e do Consulado-Geral.  Também uma bela exposição sobre o Aleijadinho (esta, por suas dimensões, ocupou todo um andar do Trade Bureau), parte de promoção que incluiu um concerto de música barroca na Catedral de St. Patrick, com Maria Lucia Godoy e presença do próprio Governador de Minas

A surpresa sadomasoquista não comprometeu, pois, os objetivos do recinto onde se deu.

Para mim, a lição foi de que o problema das transições pode não estar na ingratidão do sucessor, ou na incompetência do antecessor, mas simplesmente no risco de mal-entendidos presente em toda passagem de direção. Nas circunstâncias, de qualquer modo, a equação incompetência/ingratidão se inverteu: incompetente foi o sucessor, que confiou na gestão precedente, ingrato o antecessor, que não reconheceu a deferência causadora do erro.

O tal livro antes citado seria motivo para outro inesperado mal-entendido nas relações com o mesmo colega. Deste recebi, no Consulado Geral em Tóquio, mensagem indignada e assaz agressiva, reclamando contra o fato de que o Consulado estava transmitindo para seu endereço de e-mail notas de divulgação e propaganda do Governo federal, do qual dissentia. Perplexo, fui verificar e apurei que há algumas semanas o Consulado vinha repassando ao colega, já aposentado, informações recebidas de Brasília. Ainda mais perplexo, perguntei-me por que perversa razão o estaríamos fazendo. 

Não custou muito tempo, felizmente, matar-se a charada. 

A solução é inesperada – e didática com respeito aos riscos de nosso dia-a-dia informático: 1) as notas eram retransmitidas, há muito tempo, rotineiramente,  a meia-dúzia de endereços de funcionários do Consulado, dentre eles o meu próprio; 2) o encarregado da retransmissão usava o serviço de “AutoComplete” do processador de e-mails, o qual oferecia o endereço inteiro do destinatário após a digitação das primeiras letras; 3) meu endereço era guimarães@.... Digitado o go computador apresentava o resto do endereço e o operador rapidamente o confirmava, para ganhar tempo; 4) como eu havia expedido mensagem ao colega, interessado em saber como comprar no Brasil sua obra recém-publicada, seu endereço foi automaticamente incluído na lista de contatos do processador de e-mails; 5) por conseguinte, após o g, o endereço imediatamente completado passou a ser não mais guimarães@..., mas sim g??....@...,  que me batia por várias letras  na ordem do alfabeto; 6) o operador não se deu conta e continuou a confirmar o endereço introduzido pelo g, na suposição de que seria o meu. Daí a enxurrada de mensagens  indesejadas por meu colega.

Alertado, o operador passou a aguardar o “AutoComplete” depois de digitados também o u, o i, o m e o a de Guimarães, que barravam  solidamente as letras adventícias a fim de que a mensagem seguisse para o destinatário correto. 

De tudo isso informei prontamente o colega; nem agradeceu, ou respondeu, mas não houve mais reclamação. Houvesse nova queixa, sempre poderia alegar que o ocorrido em Tóquio acontece nas melhores famílias. E nas maiores também. Primo meu, membro do “dream-team” internacional de multinacional da informática, disse-me que sua empresa já recomendou aos empregados desativarem o “AutoComplete” dos processadores de e-mail. E, mais, mandou-me artigo sobre este episódio alarmante: uma das maiores empresas de fármacos do mundo havia visto na primeira página do “New York Times” delicada pendência em que estava envolvida, e que implicava multa de um bilhão (bilhão!) de dólares, porque seu advogado tinha nome parecido com o de um repórter do jornal e o “AutoComplete”... Bem, é fácil imaginar o resto. 

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